quarta-feira, janeiro 30, 2008

Regressão infinita na justificação das crenças?

Alfred Sisley, Cheia em Ort-Marley, Paris, 1839/1899


Conhecimento e justificação
Pense numa crença em que acredita, numa crença de cuja verdade esteja seguro. Pense, por exemplo, na sua crença de que a terra gira em volta do sol e não o contrário. Se está certo acerca disto, então, intuitivamente, tem de considerar esta crença como estando bem sustentada, como estando justificada. Mas pergunte a si mesmo a seguinte questão: o que justifica esta crença? (…)

A natureza enigmática da justificação
Uma resposta possível a esta questão podia ser que nada a justifica; que esta crença não necessita de nada além de si mesma para ser sustentada adequadamente. Porém, no caso da maior parte das nossas crenças (se não de todas) esta possibilidade não é muito plausível.
Podemos pensar numa crença como uma casa. Se a casa não tem fundações, ela cai. O mesmo vale para uma crença. Se lhe faltam fundações sólidas - se nada a pode justificar - , então a crença não é sustentada adequadamente e 'cai'. Até porque se uma pessoa pudesse sustentar como deve ser uma crença sem que ela fosse suportada por quaisquer fundamentos seguros, isso impedir-nos-ia em princípio de fazer qualquer distinção epistémica entre as crenças de indivíduos racionais e as de indivíduos irracionais. Por exemplo, imaginemos uma criança que forma, sem nenhuma base, a crença de que a lua é um balão. Se considerássemos a nossa crença de que a terra gira em volta do sol sem necessidade de justificação, então colocá-la-íamos ao nível da crença da criança acerca da lua. Porém, a justificação da nossa crença não se compara à da criança.
Portanto, parece que, pelo menos numa vasta maioria de casos, tem de haver qualquer espécie de sustentação da nossa crença a que possamos recorrer, qualquer espécie de fundamento ou razão de ser. No caso da nossa crença de que a terra gira em redor do sol, uma possível razão que poderíamos usar em favor dela seria que podemos lê-lo num manual científico escrito por um especialista no assunto. O que faríamos seria apoiar a nossa crença de que a terra gira em redor do sol apelando para uma outra nossa crença, a de que esta ideia se encontra escrita num manual fidedigno.
No entanto, o problema de apoiar as nossas crenças recorrerendo a outras crenças é que isso levanta a questão de saber qual a base dessas crenças 'de apoio'. Como já rejeitámos a possibilidade de justificar crenças se estas não forem fundamentadas, isto significa que temos de apoiar as crenças de apoio num apoio adicional. Além disso, como considerámos que eram estas crenças de apoio que justificavam, de alguma maneira, a crença original, se não conseguirmos indicar uma base adequada para apoiar as crenças de apoio, também a crença original fica sem justificação. Se acredito que a terra gira em volta do sol porque é isso que diz o manual científico, mas não tenho boas razões para acreditar no que me dizem os manuais científicos, então dificilmente poderei considerar adequadamente fundamentada a minha crença de que a terra gira em volta do sol. O problema está, é claro, no facto de que seja qual for o apoio que eu usar em favor da minha crença de que posso confiar no que dizem os manuais científicos essa crença de apoio não deixará de ser, por sua vez, uma crença adicional a necessitar de sustentação adicional. A ideia de regressão infinita começa, portanto, a pairar ameaçadoramente. Quando começamos a indicar aquilo em que apoiamos a nossa crença parece que ficamos condenados a procurar mais e mais apoios adicionais, sob pena de não podermos encontrar alicerces adequados para a nossa crença inicial.
De modo a perceber isto melhor, pense-se novamente na analogia com a casa. Notámos atrás que uma casa sem fundações cai. E uma casa que possui fundações que se apoiam em outras fundações, e estas em outras e estoutras em outras, e assim até ao infinito, não terá um destino diferente. Se, no fim, não houver algo que mantenha toda a estrutura de pé, o edifício ruirá.
É claro que na vida real somos normalmente incapazes de indicar os fundamentos das nossas crenças a partir de um certo ponto. A certa altura começamos a andar em círculos. O que justifica a crença de que a terra gira em volta do sol? O que os manuais científicos dizem. O que justifica a confiança nos manuais científicos? Que na escola o meu professor de ciências tenha asssegurado que eles são boas fontes de informação nas respectivas matérias. O que justifica confiar no que diz o professor de ciências? Que o que o professor diz coincide com o que dizem os manuais. Aqui chegados, a cadeia de justificação fechou-se sobre si própria, visto que uma razão adiantada inicialmente - acerca da fidedignidade dos manuais científicos - reaparece mais abaixo na cadeia de justificação. Porém, uma justificação circular não se pode considerar uma justificação. Pense mais uma vez na analogia com a casa. Se as fundações dessa casa assentam em outras fundações que, no fim de contas, acabam por assentar nas fundações originais, então a casa não poderá ficar de pé por muito tempo. Alguma coisa tem de sustentar tudo e como as coisas estão nada parece poder desempenhar a tarefa.

· O trilema de Agripa
· Parece que estamos confrontados com três desagradáveis alternativas de resposta à questão de como justificar as nossas crenças. Estas alternativas são as seguintes:
·
· 1 as nossas crenças não são fundamentáveis; ou
· 2 as nossas crenças apoiam-se numa cadeia infinita de justificação (i. e. numa cadeia de justificação na qual nenhuma base de apoio ocorre mais do que uma vez); ou
· 3 as nossas crenças apoiam-se numa cadeia circular de justificação (i. e. numa cadeia de justificação na qual uma base de apoio ocorre mais do que uma vez)

Todas estas alternativas são desagradáveis porque todas parecem implicar que não estamos na realidade em condições de defender a nossa crença original. Tal como uma casa sem fundações, ou com uma cadeia infinita de fundações, ou com fundações circulares, não será bem sustentada - acabará simplesmente por cair - portanto, uma crença sem fundamentos (i. e., opção 1), com uma cadeia de justificação infindável (i. e., opção 2) ou com fundamentação circular (i. e., opção 3), não estaria bem apoiada e, portanto, intuitivamente, não estaria justificada.
Este problema respeitante à estrutura da justificação é conhecido por trilema de Agripa, nome derivado do filósofo [céptico] da antiguidade grega, Agripa. (…)

Infinitismo
A resposta menos plausível (e, portanto, historicamente menos popular) ao trilema de Agripa aceita a opção 2 e sustenta que uma cadeia infinita de justificação pode justificar uma crença. Esta posição é conhecida por infinitismo. Aparentemente, esta perspectiva é insustentável, pois, tal como não é claro que uma série infinita de fundações possa sustentar uma casa, não o é também que uma cadeia infinita de razões possa justificar uma crença. (…)

Coerentismo
Uma resposta mais plausível (e mais popular) ao trilema de Agripa parte da opção 3 e sustenta que uma cadeia circular de bases de sustentação pode justificar uma crença. Esta perspectiva [é] conhecida como coerentismo (…)
É difícil reconciliar o coerentismo com a reflexão simples de que uma cadeia circular de justificação (…) não oferece nenhuma espécie de suporte para uma crença.
Parte da motivação subjacente ao coerentismo é prática, visto que os coerentistas afirmam que nós justificamos de facto as nossas crenças do modo descrito por eles. Assim é, dizem, porque os fundamentos para acreditar numa dada proposição envolvem muitas vezes, implicitamente, uma rede geral ou 'teia' de outras crenças em que acreditamos. Um modo de expressar esta ideia é dizer que as crenças individuais que defendemos reflectem a mundividência geral que possuímos. (…)
Considere-se, por exemplo, a diferença entre mim e alguém que viveu vários séculos atrás e que pensa que é o sol que gira em torno da terra em vez do contrário. Dada a sua mundividência, ver o sol a nascer de manhã é uma confirmação do facto de a terra ser o centro da órbita do sol. Por contraste, alguém como eu, que vive na actualidade, e que sabe perfeitamente que de facto a terra é que gira em volta do sol, não interpreta o nascer matinal do sol da mesma maneira. (…)
Note-se, porém, que apesar de a pessoa que viveu antes da revolução copernicana estar errada a respeito da sua crença, é admissível supor que esta se justificava em virtude das suas crenças de fundo. Dado o modo como a sua crença se apoia na sua mundividência geral, é para esta pessoa inteiramente razoável acreditar que o nascer do sol é uma confirmação do facto de o sol orbitarr em torno da terra.
Seja como for, mesmo se é desta maneira que, de facto, que formamos habitualmente as nossas crenças - apelando implicitamente à rede de crenças que fazem parte da nossa mundividência - esse facto só por si não garante que é isso que devemos fazer.
(…) falta considerar uma terceira opção(…)

Fundacionalismo 
Esta opção é conhecida por fundacionalismo. Responde ao trilema de Agripa aceitando, em linha com a opção 1, que uma crença pode ser por vezes justificada mesmo não estando apoiada em outras crenças. À primeira vista, esta perspectiva pode parecer problemática pela razão mencionada acima que referia que as crenças mal fundamentadas - como a crença da criança de que a lua é um balão - não eram candidatas prováveis à condição de crenças justificadas. Contudo, os defensores da escola fundacionalista dominante argumentam que algumas crenças não requerem ulterior justificação, porque elas, de alguma maneira, se auto-justificam. Este tipo de fundacionalismo é conhecido por fundacionalismo clássico e defende que o conhecimento é estruturado de tal modo que as cadeias de justificação terminam com crenças fundacionais especiais que se auto-justificam e que não requerem suporte adicional.(…)
O principal problema do fundacionalismo sempre foi o de identificar essas crenças que se auto-justificam e que podem servir de fundações.

Duncan Pritchard, What is This Thing Called Knowledge? (Abington & New York, 2006). Trad. Carlos Marques.

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