«Quando lhe chegou a fé?»
«Nunca chegou... Acredito poder dizer que , tanto quanto me lembre, sempre tive fé. Nasci crendo.»
«Teve períodos de perturbação, de dúvida?»
«Nunca. Tomei verdadeiramente consciência da religião, e da possibilidade de ser irreligioso, com a idade de oito-nove anos. Qualquer coisa me marcou; nessa época frequentava uma Igreja muito bela onde a missa era maravilhosamente cantada. E, curiosamente, não foi um sentimento de injustiça que me fez compreender a realidade do espírito irreligioso, mas um sentimento de perfeição, de beleza, de sublime. Mergulhei vivo no universo divino, nadei na alegria, e ainda estava aqui, sobre a terra, um homem, nada mais que um homem, pequeno, mesquinho, sem infinito! Era sobretudo esta contradição aparente que me fazia sofrer. Como foi possível sentir tão totalmente o que era Deus, e não passar de um homem? Mas este sofrimento nunca me levou a duvidar, não. Contentei-me a ler os livros santos, e os livros de fé. Mas fui atraído sobretudo por Ruysbrock, O Admirável. Scot Érigène também me comoveu. Mas foi sobretudo Ruysbrock que me formou religiosamente.»
«O misticismo?»
«Sim, o misticismo como única forma possível de religião. Naturalmente, não tardei a chocar-me com Pascal. E retrospectivamente, encontrei-me assim em estado de heresia pura e simples em relação a St. Agostinho ou ao tomismo. Foi, se quiser, nesse momento que tive qualquer coisa comparável a uma crise. Mas foi sempre no interior da fé, e nada tinha de dúvida. Para mim, Descartes ou Malebranche nunca deixaram de representar mundos estranhos, o mundo do raciocínio e da dialéctica. Lia-os, compreendia-os mas se fosse necessário colocar qualquer coisa em dúvida, seriam eles, seria a sua estranha pretensão a tudo regularizar, a construir um mundo sobre os fundamentos da linguagem humana, essa linguagem tão pobre, tão desajeitada. Sabe, dividir o pensamento em duas partes, dado que a frase se divide em duas partes, que a causa apela pela consequência, o tema o predicado, a principal a subordinada. Si deus est bonus est. Tudo isso me parecia puéril, pequeno, cego. Faltava qualquer coisa que transborda, que se esvazia, uma calma completa, uma inocência total face a face com a realidade.»
J.M.G Le Clézio, La fièvre, Gallimard, 2004
Publicado pela 1ª vez em 1965, pela Gallimard
Tradução de Helena Serrão
2 comentários:
Obrigado pela publicaçao deste post porque fiquei a conhecer um autor que ignorava.
Man40: "A Febre",obra de onde foi tirado este excerto, foi agora publicada em português, por causa do Nobel certamente. O que é estranho é que um autor como LeClésio com uma vasta obra publicada em França (mesmo aqui ao lado) tenha precisado do Nobel para se dar a conhecer! Estratégias de mercado!
Helena Serrão
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