Corpos belos
Ninguém mais do que Platão estava consciente da tentação que jaz emaranhada no coração do desejo – a tentação de separar o nosso interesse da pessoa e ligá-lo apenas ao corpo, pondo de lado a experiência moralmente exigente de possuir o outro como indivíduo livre, tratando-o, em vez disso, como um mero instrumento do nosso prazer localizado. Platão não se referiu a esta ideia exactamente desta maneira, mas ela está subjacente a todos os seus escritos sobre os temas da beleza e do desejo. Platão acreditava que há uma forma básica de desejo, que tem em mira o corpo; e uma forma mais elevada, que tem em mira a alma e – através desta – a esfera eterna da qual os seres racionais descendem em última análise.
Não temos de aceitar esta concepção metafísica para reconhecer o elemento de verdade presente no argumento de Platão. Há uma distinção, familiar a todos, entre um interesse na carne de uma pessoa e um interesse na pessoa enquanto incorporada. Um corpo é um conjunto de realidades corpóreas; uma pessoa incorporada é um ser livre revelado pela carne. Quando falamos de um belo corpo referimo-nos à bela incorporação de uma pessoa e não ao corpo considerado meramente como tal.
Isto torna-se evidente se centrarmos a nossa atenção numa pequena parte do corpo, digamos, no olho ou na boca. Podemos ver a boca apenas como uma abertura, um buraco na carne, pelo qual se engolem coisas e do qual coisas emergem. Um cirurgião pode ver a boca desse modo, durante o tratamento de uma doença. Não é essa a maneira pela qual nós vemos a boca quando estamos face a face com outra pessoa. A boca não é, para nós, uma abertura através da qual emergem sons, mas uma coisa que fala, uma continuidade do ‘eu’, do qual é porta-voz. Beijar essa boca não é colocar uma parte do corpo contra outra, mas tocar a outra pessoa no seu próprio ser. Por isso, o beijo compromete – é um movimento de um eu para outro eu e o chamar do outro à superfície do seu ser.
As maneiras à mesa ajudam a manter a percepção da boca como uma das janelas da alma, a despeito do acto de comer. É por isto que as pessoas procuram não falar com a boca cheia ou deitar comida da boca para o prato. É por isto que os garfos e os pauzinhos foram inventados e que os africanos, quando comem com as mãos, dão uma forma graciosa às suas mãos para que a comida passe pela boca sem ser notada. Assim, ao ingerir-se a comida, a boca retém a sua dimensão sociável.
Estes são fenómenos familiares, embora descrevê-los não seja fácil. Recorde-se a náusea que se sente quando – por qualquer razão – vemos de repente um pedaço de carne onde até esse momento viramos uma pessoa encarnada. É como se nesse instante o corpo se tornasse opaco. O ser livre desapareceu por detrás da sua própria carne, carne essa que já não é a pessoa, mas um simples objecto, um instrumento. Quando este eclipse da pessoa pelo seu corpo é propositadamente produzido, falamos de obscenidade. O gesto obsceno é o gesto que exibe o corpo como puro corpo, destruindo assim a experiência da incorporação. Repugna-nos a obscenidade pela mesma razão que repugnava a Platão a lascívia física que envolve, por assim dizer, o eclipse da alma pelo corpo.
Estes pensamentos sugerem algo de importante acerca da beleza física. A beleza distintiva do corpo humano deriva da sua natureza enquanto incorporação. A sua beleza não é a beleza de uma boneca e é mais do que uma questão de forma ou proporção. Quando encontramos beleza humana numa estátua, como o Apolo Belvedere ou a Daphne de Bernini, o que está representado é a beleza humana – carne animada pela alma individual, expressando individualidade em todas as suas partes. Quando o herói do conto de Hoffmann se apaixona pela boneca, Olímpia, o efeito tragicómico deve-se inteiramente ao facto de a beleza de Olímpia ser meramente imaginada, desaparecendo à medida que o mecanismo perde a corda.
Tudo isto tem enorme significado, como mostrarei mais à frente, na discussão sobre a arte erótica. Mas chamo desde já a atenção para uma observação importante. Quer suscite contemplação, quer induza o desejo, a beleza humana é vista em termos pessoais. Ela reside especialmente naqueles traços – a face, os olhos, os lábios, as mãos – que atraem o nosso olhar no curso das relações pessoais, através das quais nos relacionamos entre nós, eu a eu. Apesar das modas no que toca à beleza humana, e apesar de o corpo ser embelezado de diferentes maneiras em diferentes culturas, os olhos, a boca e as mãos têm um poder de atracção universal, pois é por estes traços que a alma do outro brilha para nós e se deixa conhecer.
4 comentários:
Olá Carlos,
que boa notícia, a da tradução. Em que editora vai sair?
obrigado e bom trabalho e muitissimo obrigado pelos textos traduzidos e disponibilizados no blog
Olá Carlos,
excelente texto, excelente tradução, excelente tema!
Obrigada, as palavras fazem-nos muita falta, ainda bem que existe a tradução, para nos vermos e compreender melhor o que nos rodeia enquanto seres humanos.
Continuação de bom trabalho.
Muito obrigada
Olá Carlos,
Excelente tema, excelente trabalho.
Parabéns.
As palavras fazem-nos muita falta enquanto seres pensantes e actores do palco da existência.
Muitíssimo obrigada.
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