quarta-feira, dezembro 23, 2009

A delicadeza

Assim, entre a quantidade de grandes virtudes do género Bem, Belo, Verdadeiro, Justo, procuraremos em vão uma minúscula virtude capaz de produzir efeitos magníficos. O BEM, sim, mas como? De que modo? Dissertar com ídolos maiúsculos afasta-nos da realidade que é, no entanto, o terreno de toda a inter subjectividade ética. (...)


A delicadeza fornece a voz de acesso às realizações morais. Pequena porta de um grande castelo, ela conduz directamente ao outro. Que diz? Afirma diante do outro que o vimos. Logo, que ele é. Segurar uma porta, praticar o ritual das fórmulas, perpetuar a lógica das boas maneiras, saber agradecer, acolher, dar, contribuir para uma alegria necessária na comunidade minimal - dois - , eis como fazer ética. criar a moral, incarnar os valores. O saber viver como saber ser.

A civilidade, a gentileza, a doçura, a cortesia, a urbanidade, o tacto, a boa-vontade, a reserva, a complacência, a generosidade, o dom, a despesa, a atenção, tantas variações sobre o tema da moral hedonista. O cálculo hedonista supõe, assim como o cálculo mental, uma prática regular precisamente para gerar a velocidade necessária. Quanto menos praticarmos a gentileza, mais ela se torna difícil de concretizar. Inversamente, quanto mais a activamos, melhor ela funciona. O hábito supõe o adestramento neuronal. Fora do campo ético, não encontramos senão um campo etológico. A indelicadeza caracteriza a selvajaria. As civilizações mais pobres, mais sombrias, mais modestas, dispõem de regras de delicadeza. Só as civilizações divididas, em risco de desaparecer, submetidas por outras mais fortes, praticam a indelicadeza em larga escala



Michel Onfray, La Puissance d'exister, Grasset,Paris, 2006, pp.144,145

Tradução de Helena Serrão

Fotografia: Erich Lessing, Viena, 1923
Maestro Von Karajan conduzindo a orquestra

domingo, dezembro 13, 2009

A sociedade do espectáculo


Richard Kalvar, EUA, n. 1944

É na figura deste mundo separado e organizado através dos media, em que as formas do Estado e da Economia se penetram mutuamente, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre toda a vida social. Depois de ter falsificado a totalidade da produção, ela pode agora manipular a percepção colectiva e apoderar-se da memória e da comunicação social, para transformá-las numa única mercadoria espectacular, em que tudo pode ser posto em questão, excepto o próprio espectáculo, que, em si, nada mais diz do que isto: o que aparece é bom, o que é bom aparece".

Giorgio Agamben, A comunidade que vem,Presença,1993, Lx, p.62

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Crítica à Retórica

Górgias, escrito em 380 a.c Sócrates -Vou expressar-me com mais clareza. Depois que concordámos, eu e tu, que há algo bom e também algo agradável, e que o agradável é diferente do bem, e que para a aquisição de cada um deles há uma espécie de exercício e de preparação: de uma parte a caça ao agradável, de outra, ao bem... Mas, a esse respeito, declara primeiro se estás ou não de acordo comigo. Estás?
Cálicles — Estou.
Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar-me se o que eu disse há pouco a estes aqui, te parece acertado, O que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que actua, e no facto de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa o prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do prazer nem a sua causa, procede pois de maneira inteiramente irracional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona prazer. Inicialmente, desafio-te a considerar se há fundamento no que eu disse e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de facto, baseados em arte e preocupados em promover os mais elevados interesses da alma, outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso anterior,do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A este respeito, como te comportas? estás de acordo com esta maneira de pensar ou rejeita-la?
Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração.
Sócrates — E isto é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para muitas?
Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas.
Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de almas,
sem saber dos seus verdadeiros interesses.
Sócrates — E agora, poderás dizer-me quais são as ocupações que produzem
esse efeito?
(...)
Sócrates — Muito bem. E com relação à retórica que se dirige ao povo ateniense e ao de outras cidades de homens livres, que diremos que seja? És de parecer que os oradores falam sempre com a finalidade precípua do maior bem e que só têm em mira, com seus discursos, deixar virtuosos, quanto possível, os cidadãos? Ou, pelo contrário, só desejam agradar aos cidadãos e descuidam, no interesse próprio, dos interesses da comunidade, além de tratarem as multidões como a crianças, por só pensarem em lhes ser agradável, sem se preocuparem, no mínimo, se desse modo eles virão a ficar melhores ou piores?
Cálicles — Essa pergunta não é simples. Há oradores que dizem o que dizem no interesse dos cidadãos, e há outros como acabaste de descrever.
Sócrates — Isso basta-me. Se há, portanto, duas maneiras de falar ao povo, uma delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para dizer o que é melhor, quer agrade
quer não agrade ao auditório. Porém nunca viste oratória dessa espécie; e se já encontraste algum orador com semelhantes características, por que não declaraste quem ele seja?
Cálicles — Não, por Zeus! Não conheço nenhum orador nessas condições, pelo menos entre os modernos.
Sócrates — Como assim? E entre os antigos, poderás citar algum de quem seja lícito afirmar que tivesse deixado melhores os atenienses, de ruins que eram antes, depois que começara a falar para o povo? Eu, pelo menos, não sei quem possa ser.

Platão, Górgias


Tradução de Carlos Alberto Nunes (revista)

quarta-feira, dezembro 02, 2009

A convicção de liberdade

Richard Kalvar, Antuérpia 1938 - EUA

A maior parte dos filósofos pensam que a convicção da liberdade humana está essencialmente ligada ao processo de decisão racional, mas penso que isso é só parcialmente verdadeiro. De facto, ponderar razões é apenas um caso muito especial da experiência que nos fornece a convicção da liberdade. A experiência característica que nos dá a convicção da liberdade humana, e é uma experiência sobre a qual somos incapazes de arrancar a convicção da liberdade, é a experiência de nos empenharmos em acções voluntárias e intencionais. (...) É esta experiência a pedra basilar da nossa crença na liberdade da vontade. Porquê? Reflictamos com todo o cuidado no carácter das experiências que temos quando nos empenhamos nas acções humanas normais da vida de cada dia. Veremos a possibilidade de cursos alternativos de acção incrustados nessas experiências. Levantemos o braço, ou atravessemos a rua, ou bebamos um copo de água e veremos que em qualquer ponto da experiência temos um sentido de cursos alternativos de acção para nós disponíveis.



John Searle, Mente, cérebro e Ciência, Lx, Ed.70, pag 116