segunda-feira, outubro 18, 2010

A liberdade constrói-se com os outros

Nós começamos a tomar consciência da liberdade ou do seu oposto na nossa relação com os outros, não na relação com nós próprios. Antes de se ter tornado um atributo do pensamento ou uma característica da vontade, a liberdade era entendida como a situação do homem livre, que lhe permitia mover-se, sair de casa, dirigir-se para o mundo e reunir-se com outras pessoas, falar com elas. Esta situação da liberdade era claramente precedida por uma libertação: para ser livre, o homem tinha primeiro de se libertar das necessidades da vida. Mas a situação de liberdade não decorria automaticamente desse acto de libertação. A liberdade requeria, para além da mera libertação, a companhia de outros homens que estivessem no mesmo estado, e requeria também um  espaço público comum onde estes pudessem ser encontrados - ou seja, um mundo politicamente organizado, no qual os homens livres se pudessem integrar através da acção e da palavra.

É claro que a liberdade não caracteriza todas as formas de relacionamento humano nem todos os tipos de comunidade. Onde os homens vivem em conjunto sem formarem um corpo político - como acontece, por exemplo, nas sociedades tribais ou na privacidade do lar - os factores que regem a sua acção e a sua conduta são, não a liberdade, mas as necessidades da vida e as dificuldades relacionadas com a sua preservação. Além disso, onde o mundo feito-pelo-homem não se converte em cenário para o discurso e para a acção - como nas comunidades governadas de um modo despótico, que expulsam os seus súbditos para a estreiteza do lar e assim impedem a formação de uma esfera pública - a liberdade carece de realidade mundana. sem uma esfera pública politicamente garantida, a liberdade fica sem espaço onde emergir. Claro que pode sempre habitar no coração dos homens como desejo ou vontade ou esperança ou anseio; mas o coração humano, como todos sabemos,  é um local bastante escuro, e o que quer que aconteça na sua obscuridade dificilmente pode ser considerado um facto demonstrável.  A liberdade como facto demonstrável coincide com a política, e as duas estão intimamente relacionadas.

Hannah Arendt, O que é a liberdade, in Entre o Passado e o Futuro, Relógio d´Água, Lx, 2006

3 comentários:

Micael Sousa disse...

Deixaria uma questão. Será que numa sociedade democrática temos a liberdade de abdicar livremente da nossa liberdade? Não entraremos num paradoxo. Numa sociedade que se quer democrática e onde os seus cidadãos não assumem a responsabilidade da sua liberdade será que a democracia se pode concretizar?
A nossa, actual e contemporânea, pelo menos em Portugal tende, se é que isto é algo de novo, para esse estado de liberdade incompleto que se manifesta na dimensão politica e de cidadania dos próprios cidadãos?

Será que estas minhas questões fazem sentido?

tempus fugit à pressa disse...

são sintomas de fé

para esse estado de liberdade incompleto que se manifesta na dimensão politica e de cidadania dos próprios cidadãos?

Será que estas minhas questões fazem sentido?

fazem muito sentido
mas quem sou eu para dizer tal

Helena Serrão disse...

micael Sousa: O que significa abdicar livremente da liberdade? ausentar-se da esfera pública, não intervir na escolha dos políticos que nos governam? Penso que esse direito nos assiste mas que, como princípio impediria qualquer tipo de sociedade democrática e teria como consequência uma sociedade autoritária ou ditatorial.A questão refrida é a de que sem espaço público de discussão e intervenção, apenas na esfera privada não pode haver liberdade, porque esta é um fenómeno político, construção com os outros iguais. Não é por isso um direito abstracto mas uma prática.
As suas questões fazem sentido e obrigada pela sua intervenção, não sei se contribuí para a clarificação.
Cumprimentos.

Para o comentador com nome complicado,acrescente-se os cumprimentos pela intervenção, embora não se compreenda o alcance.