quinta-feira, junho 30, 2011

A Ideia de Europa (mais uma elegia) 1988

Europa? O que é para mim a Europa?

O que não é : A Europa dos Euro-negócios, Euro-dólares, a tão aclamada e futura Comunidade Europeia, que é suposto que ajude os países da Europa do Oeste capitalista a suportar os desafios económicos do final do século XX; o Euro-Kitsch aclamado nesses países como Arte e literatura, os Euro-Festivais, os Euro-espectáculos, o Euro-jornalismo, a Euro-televisão. Mas essa Europa está a moldar inexoravelmente a Europa que eu adoro, a cultura polifónica em cujas tradições, nalgumas delas, criei, senti , pensei e cresci inquieta, e através da qual, pelos seus mais humildes padrões, alinhei os meus.

A América não é, claro, completamente diferente da Europa, apesar de ser muito mais dissemelhante da Europa (mais bárbara) do que muitos Europeus gostariam de pensar. E, no entanto, como a grande maioria dos meus compatriotas, sou uma descendente de Europeus – especificamente de Europeus-judeus ( os meus bisavós emigraram para o Nordeste dos Estados Unidos há um século, a partir do que hoje é a Polónia e a Lituânia) – Não penso habitualmente no que a Europa significa para mim como Americana. Penso no que significa para mim como escritora, como cidadã da literatura – o que é uma cidadania universal.

Se tivesse que descrever o que a Europa significa para mim como Americana, começaria por Libertação. Libertação daquilo que na América se considera cultura. A diversidade, seriedade, segurança da densidade cultural Europeia constitui o ponto Arquimediano, a partir do qual posso, mentalmente, mover o mundo. Não o posso fazer da América, a partir do que a cultura Americana me dá, enquanto conjunto de padrões, enquanto legado. Por isso a Europa é essencial para mim, mais do que a América, apesar de todas as residências temporárias na Europa não fazerem de mim uma expatriada.

Para que não nos iludamos, a Europa significa, contudo,  bem mais que esse ideal de diversidade e esplêndido alimento ... esses prazeres, esses padrões. Tanto  na antiga realidade, pelo menos desde a Idade Média Latina, como  agora, a perene, e muitas vezes hipócrita aspiração“Europa”, como reunião moderna clamando pela unificação política, promoveu invariavelmente a supressão e desvanecimento das diferenças culturais, e a concentração e fortalecimento do poder do Estado.

tradução Helena Serrão
Susan Sontag, The idea of Europe, in Where the stress falls, Penguin,Londres, 2009, ´p. 285, 286 




segunda-feira, junho 20, 2011

Poder e norma

A norma não se define de modo nenhum como uma lei natural, define-se antes pelo papel de exigência e coerção que é capaz de exercer em relação aos domínios aos quais se aplica. A norma é portadora, por consequência de uma pretensão de poder. Não é simplesmente, não é mesmo, um princípio de inteligibilidade; é um elemento a partir do qual um certo exercício do poder se considera fundado e legitimado. Conceito polémico (...). Talvez pudéssemos dizer político. Em todo o caso (...) a norma carrega consigo um princípio de qualificação e correcção.Não tem por função excluir, rejeitar. Ela está, pelo contrário, sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de projecto normativo.

É este conjunto de ideias que gostaria de investigar historicamente, esta concepção simultaneamente positiva, técnica e política da normalização, aplicando-a ao domínio da sexualidade. E verão, que por detrás disso, no fundo, aquilo a que me prendo, ou aquilo a que gostaria de me prender,  é a ideia de que o poder político -sobre todas as suas formas e seja a que nível o tomemos - não deve ser analisado a partir de um horizonte hegeliano como uma forma de bela totalidade que o poder teria o efeito de ignorar ou quebrar pela abstracção ou pela divisão. Parece-me que é um erro, metodológico e histórico, reconhecer que o poder é essencialmente um mecanismo negativo de repressão: porque o poder tem essencialmente como função, proteger, conservar ou reproduzir as relações de produção. Parece-me um erro considerar que é qualquer coisa que se situa, ña relação do jogo de forças, num nível superestrutural. É enfim um erro considerar que está essencialmente ligado a efeitos de ignorância. (...) esta concepção de poder pode-se reportar ao modelo, ou à realidade histórica da sociedade esclavagista, é portanto uma concepção desadequada da realidade da qual somos contemporâneos.

Tradução de Helena Serrão

Michel Foucault, Les Anormaux, Cours du 15 Janvier de 1975 ao Collège de France, Gallimard/Seuil, 1999 Paris, pp.46,47