ENTREVISTA A
Stephen Law sobre o problema do mal
David Edmonds: existe uma objecção poderosa contra aqueles que, como os cristãos, judeus e muçulmanos, acreditam num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom. Stephen Law está aqui para discutir isso mesmo. Stephen Law ensina na Universidade de Londres e é editor da revista Think.
Nigel Warburton: O tópico sobre o qual queremos conversar é o problema do mal. Importa-se de nos dar uma ideia do que se trata?
Stephen Law: Bem, na verdade existem dois problemas, não apenas um. Se aceitamos à partida a ideia de que Deus é todo-poderoso, perfeitamente bom e tudo sabe, porque é que o mal existe ou porque é que o mal existe na quantidade em que existe? Há aqui dois problemas diferentes. O primeiro é o chamado problema lógico do mal. Há quem argumente que a existência de Deus é incompatível com a mínima existência de qualquer espécie sofrimento ou mal. O outro problema do mal é este: se acreditamos num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom, como explicar que exista tanto sofrimento e mal no mundo? Seguramente que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom seria capaz de produzir um mundo onde existisse muito menos sofrimento, e, sendo Ele perfeitamente bom, quereria seguramente que o mundo contivesse muito menos sofrimento. Porque há, então, tanto sofrimento? Portanto, de acordo com o problema indiciário do mal, é a quantidade de mal o verdadeiro problema, ao passo que de acordo com o problema lógico é a existência de qualquer mal ou sofrimento que é considerado o problema. A quantidade de sofrimento é um indício de que Deus não existe.
NW: Trata então o sofrimento como mal?
SL: Bem, é claramente um mal, e tende a ser o mal em que as pessoas se focam quando discutem o problema do mal. Talvez seja melhor chamar ao problema do mal o problema do sofrimento. A palavra «mal» acarreta consigo uma grande carga metafísica. Podemos ver-nos livres de toda a carga metafísica e falar apenas de sofrimento. A existência de enormes quantidades de sofrimento é claramente um grande problema para quem acredita num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom.
NW: Voltando à distinção entre o problema lógico do mal e o problema indiciário do mal, pensa que é igualmente importante discutir tanto um como outro?
SL: Bem, são ambos problemas muito interessantes. Julgo que aquele que é realmente um problema sério para os teístas é o problema indiciário. O problema lógico pode ser porventura resolvido com relativa facilidade. Bastaria mostrar que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom criaria algum sofrimento se esse sofrimento fosse o preço a pagar por um bem maior que o superasse. Seria um mundo melhor apesar de conter em si sofrimento. Soa paradoxal, mas não é. Por exemplo, poderia dizer-se que a compaixão e a comiseração são grandes virtudes e que é importante que as pessoas tenham a oportunidade de exibir essas virtudes, mas que só é possível exibi-las se algumas pessoas sofrerem e pudermos sentir por elas comiseração.
NW: Esse é, portanto, o problema lógico. Mas o problema indiciário é: porque há tanto sofrimento?
SL: Correcto. Do que se trata neste caso não é mostrar que o sofrimento é incompatível com um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom, mas que um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom não produziria seguramente um mundo que contivesse em si tanto sofrimento. Para mim, este argumento arruma mais ou menos de vez com a questão de se saber se Deus existe ou não existe. Parece-me realmente que há indícios empíricos esmagadores contra a existência de um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom.
Mas antes de falarmos disso, seria vantajoso que pensássemos no que, em geral, torna uma crença razoável. As pessoas sentem-se frequentemente confundidas quanto à razoabilidade e à verdade. O que quero sublinhar acerca da razoabilidade é que se trata de uma questão de grau. As crenças podem ser mais ou menos razoáveis. Algumas crenças são realmente muito razoáveis, algumas um pouco menos razoáveis, algumas não são excepcionalmente razoáveis mas não são irrazoáveis, e há mesmo algumas crenças que são claramente irrazoáveis. Há uma escala de razoabilidade na qual podemos posicionar as crenças. Tome-se a crença de que o Japão existe. Nunca lá estive, nunca vi o Japão com os meus próprios olhos, mas parece ser algo em que é muito razoável acreditar, pois possuo indícios esmagadores de que o Japão existe. Já comi em restaurantes de sushi, conheci pessoas que afirmam ser japonesas e não tenho qualquer razão para pensar que exista uma vasta conspiração internacional para levar os ocidentais a pensar que o Japão existe quando não é esse o caso. Dito isto, não posso provar inequivocamente sem qualquer margem para dúvidas que o Japão existe. Talvez aquelas pessoas que afirmam ser japonesas tenham passado horas a maquilhar-se antes de eu as ter conhecido. Apesar disso, é muito razoável eu pensar que o Japão existe. Outras crenças são um pouco menos razoáveis mas ainda assim bastante razoáveis. Há vida inteligente em outros planetas noutras partes do universo? Não é algo em que seja irrazoável acreditar. Sabemos que a vida inteligente se desenvolveu aqui. Sabemos que há milhões e milhões de planetas como este. Por outro lado, não temos qualquer prova dessa vida inteligente. Descendo na escala de razoabilidade chegamos a crenças como a de que existem fadas, duendes e de que Elvis Presley está vivo e de boa saúde e que mora em Sintra. Há crenças para as quais poucas provas há e para as quais há mesmo muitas provas em contrário, apesar do que dizem alguns sites da Internet.
NW: Temos então esta escala de crenças que vai do muito plausível ao muito implausível. Como é que isto nos ajuda relativamente ao problema de saber se Deus existe ou não?
SL: Bem, o que é importante não é saber se há uma prova conclusiva – uma prova acima de qualquer dúvida. Pode dar-se o caso de não nos ser possível provar de forma conclusiva sem qualquer margem para dúvidas que Deus existe, e pode dar-se também o caso de não nos ser possível provar de forma conclusiva sem qualquer margem para dúvidas que Deus não existe. Mas mesmo que não possamos provar uma coisa nem outra, pode ainda assim ser possível estabelecer que a crença em Deus é de facto muito razoável ou – e esta é a minha perspectiva – muito irrazoável, apesar de não se poder refutá-la. A questão não é de todo a de saber se temos ou não «provas»: trata-se de uma questão de razoabilidade. As pessoas religiosas não podem dizer: «Não se pode provar nem uma coisa nem outra, logo é uma questão de fé, e o ateísmo é tanto uma posição de fé como o teísmo». Isto não é, pura e simplesmente, verdade. Mesmo que não possamos «provar» nem uma coisa nem outra, pode bem dar-se o caso de o ateísta conseguir obter razões fantasticamente boas para pensar que Deus não existe, porventura tão boas quanto aquelas que nos levam a pensar que não existem fadas no fundo do meu jardim. Afinal, não posso provar categoricamente que não existem fadas no fundo do meu jardim.
NW: Vejamos, disse que a crença em Deus não é uma posição razoável. Porque tem essa convicção?
SL: Apontaria duas coisas. Antes de mais, olhe-se para muitos daqueles argumentos populares a favor da existência de Deus que os não filósofos consideram persuasivos – tal como o argumento do desígnio. Muitas pessoas dizem: «Quais as possibilidades de o universo ter sido constituído tal como é, de modo a existirem planetas estáveis e a que a vida pudesse ter-se desenvolvido? É astronomicamente improvável que essa situação pudesse existir por acaso. Portanto, é razoável acreditar que exista qualquer espécie de inteligência por detrás do universo». Pode ser. Mas um problema com este argumento é que se trata apenas de um argumento a favor da existência de uma inteligência superior. Talvez seja um bom argumento. Não penso que o seja, mas, a título meramente argumentativo, vou admitir que o é. Que conclusões podemos tirar acerca da personalidade ou do carácter moral dessa inteligência? E a resposta é: na verdade, nenhuma. Porquê concluir que o criador é o Deus judaico-cristão – que é todo-poderoso, perfeitamente bom e supremamente benevolente? Porquê tirar essa conclusão? Não nos foi dada qualquer razão para tirar essa conclusão. Tudo o que nos foi dito até agora foi que existe uma qualquer espécie de inteligência por detrás das coisas. Portanto, este argumento popular fracassa.
O mesmo acontece com outros, como os argumentos cosmológicos da primeira causa mais toscos. «Porque há sequer alguma coisa? Tem de haver um criador que tenha trazido tudo à existência». Certo, há um criador, mas porque é que se pensa que é o Deus judaico-cristão? Portanto, estes argumentos não são bons argumentos a favor da existência de um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom. Pior ainda, há indícios fantasticamente bons contra a existência de um tal criador. Esses indícios são os que dão lugar ao problema do mal.
NW: Mas os teístas têm habitualmente respostas para o problema do mal, conhecidas por teodiceias, que explicam como pode haver mal no mundo.
SL: Sim. Uma das mais populares é a explicação do sofrimento pelo livre-arbítrio. Há várias versões. As mais simples dizem: «Deus deu-nos o livre-arbítrio. Não nos fez autómatos que fazem apenas aquilo que Deus ordena ou nos obriga a fazer, como se fôssemos marionetas dançando ao ritmo dos seus cordelinhos. Deus cortou os cordelinhos, libertou-nos, de modo a que pudéssemos fazer as nossas escolhas, tomar as nossas decisões e agir de acordo com estas. Infelizmente, escolhemos por vezes fazer o que não é correcto e originamos guerras, roubamos e assim por diante. O sofrimento é uma consequência, mas esse sofrimento é compensado pelo bem do livre-arbítrio».
NW: É um argumento que me parece bastante convincente. O que há nele de errado?
SL: Bem, um problema é que não consegue explicar muito sofrimento, como, por exemplo, o sofrimento produzido pelos desastres naturais. Não há muito tempo houve um terramoto no Paquistão no qual dezenas de milhares de crianças ficaram esmagadas debaixo dos edifícios. Tinham acabado de chegar à escola e ficaram encurralados sob os escombros, morrendo passados dias ou mesmo, em alguns casos, semanas. Como podemos explicar isto de um modo que seja compatível com a existência de um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom? Não chega dizer «Bem, há-de ter alguma coisa a ver com o livre-arbítrio humano», pois nós não produzimos terramotos, nem mesmo acidentalmente. Além disso, não esqueçamos que não são apenas os seres humanos a sofrer desta maneira. Quem tenha visto o programa Planeta Terra da BBC saberá que partilhamos o mundo com muitos seres sencientes cujas vidas são absolutamente horríveis. Não apenas actualmente, pois tem sido assim durante centenas de milhões de anos. Há cerca de 200 milhões de anos houve um acontecimento que provocou uma extinção em massa – possivelmente um cometa, não sabemos exactamente, mas sabemos que desapareceram da face da terra 95 por cento das espécies. Terá provocado um sofrimento inimaginável. Clarificando melhor o problema indiciário do mal, podemos expô-lo deste modo: um Deus todo-poderoso e perfeitamente bom podia pôr algum mal no mundo, mas não poria nem um único grama de sofrimento gratuito e inútil, um único grama que fosse. Ora, quando olho para essas centenas de milhões de anos de horror inimaginável, parece-me que não se pode manter sensatamente que exista um tal ser.
NW: O que acabou de dizer acerca das centenas de milhões de anos de sofrimento aponta, talvez, não para um Deus bom mas para um Deus não muito simpático.
SL: Podemos considerar isso como uma hipótese. Existe um Deus todo-poderoso e absolutamente mau. A primeira coisa que notará é que essa hipótese é tão bem sustentada pelos habituais argumentos a favor da existência de Deus quanto a hipótese do Deus bom. Se há um arquitecto, porque não um arquitecto mau em vez de um bom arquitecto? Se há uma primeira causa, porque não uma causa primeira má em vez de uma causa primeira boa? Se acredito num Deus mau, posso servir-me desses argumentos tão eficazmente como quando acredito num Deus cristão.
Mas, é claro, ninguém vai acreditar num Deus mau. Porquê? Bem, olhemos pela janela lá para fora. O que vejo neste momento são crianças felizes e sorridentes brincando de um lado para o outro sob um sol radioso. Porque haveria um Deus mau de permitir tal coisa? Seguramente, um ser supremamente maligno estaria interessado em torturar-nos para toda a eternidade com um ferro em brasa e não em produzir arco-íris, alegria, sol e gelados. Há demasiadas coisas boas no mundo para que isto seja a criação de um ser supremamente poderoso e supremamente mau. Podemos ver que este problema – chamemos-lhe o problema do bem – é simplesmente o inverso do problema do mal. Se acreditamos num Deus todo-poderoso e perfeitamente bom temos de explicar porque é que há tanta coisa má. Se acreditamos num Deus todo-poderoso e completamente mau temos de explicar porque é que há tanta coisa boa. Na verdade, parece-me que se podem provavelmente desenvolver alguns argumentos engenhosos para lidar com o problema de se saber porque é que um Deus mau nos dá a desfrutar um belo pôr-do-sol. Para tornar mais extrema a nossa apreciação do terrível horror e fealdade da vida do dia-a-dia: porque nos dá ele corpos jovens, em boa forma e belos? Bem, fá-lo apenas por cerca de dez ou quinze anos. Depois, vagarosa e inevitavelmente, as pessoas vão caindo na decadência e decrepitude até acabarem por morrer, irremediavelmente feias, incontinentes e a cheirar a xixi, tendo tido uma existência curta e, em última análise, sem sentido. Quer dizer, que melhor maneira podia haver para maximizar o sofrimento do que dar-nos algo de bom durante um curto período para depois o tirar a pouco e pouco e inexoravelmente? A maior parte das teodiceias podem ser voltadas de pernas para o ar. E quando as viramos de pernas para o ar deste modo, elas revelam-se anedóticas. Portanto, a questão é: porque levamos tão a sério as teodiceias a que estamos habituados? Na escala da razoabilidade, coloco o Deus mau muito em baixo. Mas essa é exactamente a razão pela qual coloco o Deus bom muito em baixo na mesma escala.
NW: Então qual é a crença razoável?
SL: Para voltar à escala da razoabilidade, parece-me que as hipóteses do Deus mau e do Deus bom se encontram ambas muito abaixo nessa escala. Uma descrença um pouco menos irrazoável seria que há alguma espécie de inteligência, mas que não é nem perfeitamente boa nem má. Talvez exista um Deus e ele tenha dias bons e dias maus. Se olharmos para o Deus do Antigo Testamento é óbvio que esse ser não é supremamente benevolente. Comporta-se antes a maior parte do tempo como um filho da mãe extremamente irascível, embora tenha os seus dias bons. Se olharmos para o mundo, ele parece estar mais de acordo com esta hipótese do que com a do Deus mau ou a do Deus bom. Mas, para ser franco, acho que podemos e devemos provavelmente pôr de parte todos os deuses.
David Edmonds & Nigel Warburton, Philosophy Bites. 25 Philosophers on 25 Inriguing Subjects (Oxford, 2010, pp. 210-218). Trad. Carlos Marques.