O filósofo inglês diz que os desordeiros de Londres são obra de uma juventude dependente e ressentida, criada pelo excesso de políticas estatais assistencialistas.
O filósofo inglês Roger Scruton, de 67 anos, é presença constante nos debates realizados no seu país quando é preciso ter na mesa um pensador independente e corajoso. Autor de 42 livros de ensaios, Scruton é uma pedra no sapato da ideologia politicamente correcta que predomina bovinamente na Europa. Multiculturalismo? Um desastre. A arte moderna? Detestável. E por aí vai o filósofo, que leccionou nas universidades de Oxford, em Inglaterra, e Boston, nos Estados Unidos, e atraiu para si o cognome de “defensor do indefensável”. Um dos fundadores do Conservative Action Group, que ajudou a eleger a primeira-ministra Margaret Tatcher, publicou recentemente um novo livro, As Vantagens do Pessimismo [já traduzido em Portugal pela Quetzal].
UM BOM NÚMERO DE INTELECTUAIS INGLESES INTERPRETOU A ONDA DE VANDALISMO EM LONDRES E ARREDORES COMO ACTOS DE JOVENS NIILISTAS SEM GRANDES REPERCUSSÕES. O SENHOR CONCORDA?
Acho essa explicação muito simplista. Muitos desses desordeiros são realmente niilistas, que não acreditam em nada e não se identificam com nenhuma instituição, crença ou tradição capaz de fazer florescer em cada um deles o sentido de responsabilidade e o respeito pelo próximo. Alguns não têm emprego. Mas, na maior parte dos casos, eles agiram devido a uma escolha deliberada. Desemprego e niilismo sempre existiram. Ninguém mencionou como uma das causas da desordem a deformação causada nesses jovens pelas políticas do estado de bem-estar social. Diversos estudos mostram com clareza a vinculação desses programas assistencialistas com a proliferação de uma classe baixa ressentida, raivosa e dependente. Não quero ser leviano e culpar apenas as políticas socialistas pelos tumultos. As pessoas promovem arruaças por inúmeras razões. Entre os jovens, a revolta é uma condição inerente, um padrão de comportamento. Mas é preciso um pouco mais de honestidade intelectual para buscar uma resposta mais concreta sobre o que ocorreu em Londres. Por debaixo do verniz civilizador, todo homem tem dentro de si um animal à espreita. Infelizmente, se esse verniz for arrancado, o animal irá mostrar a sua face. A promessa de concessão de direitos sem a obrigatoriedade de deveres e de recompensas sem méritos foi o que arrancou o verniz nessa recente eclosão de episódios de vandalismo na Inglaterra.
OS DISTÚRBIOS EM LONDRES E OS PROTESTOS NO CAIRO, EM ATENAS, EM MADRID E EM TEL-AVIV SÃO O MESMO “GRITO DOS EXCLUÍDOS”?
Sou céptico em relação à ideia de que os protestos que eclodiram em diversos pontos do mundo têm a ver com exclusão, com o suposto aumento no número de pobres ou com concentração da riqueza. Os desordeiros de Londres são, pelos padrões do século XVIII, ricos. Desculpe-me, mas é resultado de exclusão destruir uma cidade porque tem apenas um carro, um apartamento pequeno pelo qual não paga renda, recebe uma mesada do governo sem ter de fazer nada para recebê-la, compra três cervejas, mas gostaria de beber quatro, e acha que ter apenas um televisor em casa é pouco? Não. Ver a exclusão nesses episódios só faz sentido na cabeça de um professor de sociologia. É um absurdo também comparar os tumultos de Londres com os acontecimentos no Médio Oriente. Os jovens do Egipto exigiam algo do governo. Os jovens ingleses não querem saber do governo ou das instituições.
NO SEU ÚLTIMO LIVRO, O SENHOR AFIRMA QUE O OPTIMISMO É MAIS NOCIVO PARA OS INDIVÍDUOS E PARA AS NAÇÕES DO QUE O PESSIMISMO. COMO PODE O OPTIMISMO SER TÃO PREJUDICIAL?
Não falo do optimismo como virtude, nem da esperança ou da fé, que servem para a elevação espiritual do indivíduo e fomentam inovações e avanços. O optimismo prejudicial é o desmedido ou, como disse o filósofo Arthur Schopenhauer, o optimismo mal-intencionado, não escrupuloso. É o tipo de pensamento que está por detrás de todas as tentativas radicais de transformar o mundo, de superar as dificuldades e perturbações típicas da humanidade por meio do ajuste em larga escala, de uma solução ingénua e utópica, como o comunismo, o fascismo e o nazismo. Optimismo e utopia em excesso geralmente acabam em nada, ou, pior, dão em totalitarismo. Lénine, Hitler e Mao pertencem a essa categoria de optimistas sem escrúpulos. A crise financeira e institucional da Europa é a mais recente consequência do pensamento utópico e do optimismo exagerado que são a base, o fundamento e a força propulsora da União Europeia.
PODE REDUZIR-SE A UNIÃO EUROPEIA APENAS A UMA MANIFESTAÇÃO DE OPTIMISMO UTÓPICO E INSENSATO?
É uma ilusão, se não uma loucura, acreditar que os alemães e os gregos podem pertencer à mesma organização e adequarem-se às mesmas normas financeiras. Como impor a mesma moeda, o mesmo sistema e o mesmo modo de vida ao alemão, trabalhador, cumpridor das leis, respeitador da hierarquia, e ao grego fanfarrão e avesso às normas? Arrisco-me a dizer que a União Europeia é um fracasso porque contém as insanidades institucionais da velha experiência comunista. Tal como o comunismo soviético, a União Europeia é um objectivo inalcançável, pois foi escolhido pela sua pureza, que exige que todas as diferenças sejam atenuadas, os conflitos superados, e no qual a humanidade se deve encontrar como que sob uma unidade metafísica que jamais pode ser questionada ou posta à prova.
APESAR DO COLAPSO DO COMUNISMO E DE OUTRAS TRAGÉDIAS SEMELHANTES, AS PESSOAS CONTINUAM AGARRADAS A CAUSAS UTÓPICAS. PORQUÊ?
O pensamento utópico sobrevive porque não se trata realmente de uma ideia, mas de um substituto de uma ideia, algo que serve de alívio para a difícil – e geralmente depressiva – tarefa de ver as coisas como elas são realmente. É uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efectivo. O pensamento utópico remete-nos directamente para o objectivo, passando por cima da viabilidade do projecto. É fácil digeri-lo e incoeporar o seu optimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco.
O AMBIENTALISMO É A GRANDE UTOPIA MODERNA?
Há dois tipos de ambientalista. O primeiro sonha com soluções amplas, inalcançáveis, cujo objectivo real não é promover o bem de ninguém nem do planeta, mas sim aumentar o ego dos seus criadores. O segundo é realista, segue o caminho conservador e reconhece que o que deve ser feito em prol do ambiente é difícil, atinge um número limitado de pessoas ou de lugares e exige sacrifícios reais. O problema é que a questão ambiental foi parar às mãos erradas. A esquerda transformou a protecção do meio ambiente numa causa, num movimento que necessita de intervenções estatais, num assunto em que há culpados e vítimas. No caso, os culpados são os capitalistas e a vítima é o planeta. A esquerda adora o culto da vítima.
QUE TRADIÇÃO É ESSA?
É uma tradição esquerdista, que vem do século XIX e de Karl Marx, em particular. Consiste em julgar toda forma de sucesso humano a partir do fracasso dos outros. Com base nisso, engendra um plano de salvação para os mais fracos. Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos de esquerda continuam a fazer sucesso. Eles oferecem sempre uma causa justificável e uma vítima a ser resgatada. No século XIX, a esquerda pretendia salvar os proletários. Nos anos 60, a juventude. Depois, vieram as mulheres e, por último, os animais. Agora, pretendem resgatar o planeta, a maior de todas as vítimas que encontraram para justificar os seus actos. Ora, as questões ambientais são reais e não podem ser enclausuradas na ideologia de esquerda. Temos o dever de cuidar do ambiente e sacrificar os nossos desejos para garantir um lar, um futuro para as próximas gerações. O problema é radicalizar a questão no âmbito de um movimento com conotações até religiosas. Preservar o ambiente tornou-se uma questão de fé. Está na hora de acabar com o pensamento de que a sociedade é um jogo de soma zero, segundo o qual se um ganhar o outro tem de perder. Com práticas ambientais sustentáveis , todos ganham.
ONDE SE REVELA MAIS ESSA IDEIA DA ‘SOMA ZERO’ DAS RELAÇÕES HUMANAS?
Ela é o refrão central dos socialistas, é o principal inimigo da caridade, da gentileza e da justiça. Na política internacional, essa forma de pensar expressa-se com toda a clareza no antiamericanismo. Os Estados Unidos, a maior economia do mundo, o maior poder militar, tornaram-se o alvo principal dos ressentidos, dos que se consideram fracassados por causa do sucesso alheio. O ataque às Torres Gémeas, há dez anos, é uma prova do que o ressentimento colectivo estimulado pela falácia da soma zero é capaz de causar.
POR QUE RAZÃO O SENHOR CRITICA TANTO A POLÍTICA DE IMIGRAÇÃO DOS PAÍSES EUROPEUS?
A imigração em massa não é um assunto fácil. Basta escrevermos a palavra imigrante para sermos mal interpretados. Não sou contra a imigração. A minha opinião é que os imigrantes só se adaptarão a um país se forem incorporados legal e culturalmente à nação que os recebe. Para que isso dê certo, os forasteiros têm de superar o sentimento de distância que possuem em relação ao novo país. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, no passado. Os países europeus fazem justamente o oposto ao incentivar o multiculturalismo: encorajam as comunidades de estrangeiros a manter sua cultura e identidade, a não se misturar. Dessa forma, os imigrantes passam a definir-se como diferentes, afastados, excluídos da comunidade, o que só faz crescer as tensões entre os grupos étnicos. Os recentes tumultos em Londres devem-se, em parte, ao multiculturalismo.
ANÁLISES COMO ESSA TÊM SIDO ATACADAS POR, POTENCIALMENTE, FOMENTAR ATENTADOS COMO O QUE TRAUMATIZOU A NORUEGA, EM JULHO.
Isso é justo? Alguém culpa Jean-Paul Sartre pelo genocida cambojano Pol Pot? Karl Marx deve ser culpado pelos assassinatos de Stalin? Os socialistas alemães são responsáveis pelos actos da organização terrorista Facção do Exército Vermelho? Extremistas como o norueguês Anders Breivik podem agir em parte motivados por ideias, da mesma forma que eu ou qualquer outra pessoa. Sempre que um lunático de extrema direita pratica um crime terrível, os intelectuais de esquerda unem-se para dizer em coro: é culpa do pensamento conservador. Eles esquecem-se dos crimes muito mais graves que foram cometidos em nome dos ideais da esquerda. Indivíduos como Breivik cometem crimes não por causa das ideias que comungam com outras pessoas, mas por causa de algo que os afasta, isola e diferencia das outras pessoas. Eles matam por total e absoluto desprezo por vidas inocentes.
O QUE É FAZER PARTE DE UMA MINORIA NO MUNDO ACADÉMICO?
Eu acordei do meu delírio socialista durante os tumultos de maio de 1968, em Paris. No meio da destruição, das barricadas e das janelas quebradas, percebi que aqueles estudantes estavam intoxicados pelo simples desejo de destruir coisas e ideias, sem a mínima preocupação de colocar algo relevante no lugar. Foi difícil aceitar que o meu futuro era o de me tornar um pária intelectual no meio da maioria esmagadora de esquerdistas. Em todo o mundo, as universidades têm uma declarada inclinação para a esquerda. É difícil explicar o motivo dessa propensão esquerdista, algo que persiste desde o iluminismo. Na minha tentativa de desvendar esse mistério, cheguei à seguinte conclusão: quando uma pessoa começa a pensar sobre as grandes questões que afligem o homem e a sociedade, tende a aceitar as posições da esquerda, pois elas parecem oferecer soluções. Ao ir-se mais além, ao aprofundar-se mais, a pessoa aprende a duvidar e a rejeitar o argumento esquerdista. Nas universidades muita gente pensa, mas poucas reflectem profundamente.
O QUE É UM CONSERVADOR?
É alguém que considera a liberdade um valor, um objectivo, mas não chama a isso um ideal. O conservador reflecte sobre coisas reais e sabe que a liberdade verdadeira é obtida sob leis e regras, pois sem instituições não há liberdade, mas selvajaria.
[Adaptado para português de Portugal]