segunda-feira, abril 02, 2012

Matéria e Espírito.

Embora a Idade Média, a Antiguidade ,  incluindo a humanidade inteira desde os seus primeiros balbucios, tivessem  vivido na convicção de uma alma substancial, na segunda metade do século XIX, assiste-se ao nascimento de uma psicologia "sem alma".Sobre a influência do materialismo científico, tudo o que não pode ver-se com os olhos, nem apreender-se com as mãos é duvidoso , é logo suspeito de ser metafísico, e torna-se comprometedor. Desde esse momento, só é "científico", e por consequência admissível,  o que é manifestamente material e  pode ser deduzido de causas acessíveis aos sentidos. (...)A crença na substancialidade do espírito cedeu, pouco a pouco, ante uma afirmação cada vez mais intransigente da substancialidade do mundo físico, até que, ao fim -depois de uma agonia de quase quatro séculos - , os representantes mais avançados da consciência europeia, pensadores e sábios, considerarão o espírito como totalmente dependente da matéria e das causas materiais.
Seria um erro, sem dúvida,  imputar à filosofia e às ciências naturais uma inversão tão radical. Sempre houve numerosos filósofos e homens de ciência inteligentes que não deixaram de protestar, graças a uma suprema intuição vinda da profundidade do seu pensamento, contra esta inversão irracional das concepções: mas era difícil imporem-se, perdiam popularidade e a sua resistência era impotente para vencer a preferência sentimental e universal que - como marca de fundo - levou a ordem física até ao pináculo. Não se pense que transformações tão radicais no seio da concepção das coisas possam ser fruto de reflexões racionais; pois acaso existem especulações racionais capazes de provar ou negar alternativamente o espírito ou a matéria? Estes dois conceitos (cujo conhecimento nos cabe esperar de todo o contemporâneo culto) não são símbolos notáveis de factores desconhecidos, cuja existência é proclamada e abolida segundo os humores, os temperamentos individuais e os altos e baixos do espírito da época. Nada impede a especulação intelectual de ver a "psique" como um fenómeno bioquímico complexo, reduzindo-a assim, em última análise, a um jogo de electrões, ou, pelo contrário, decretar que é vida espiritual  a aparente ausência de norma que reina no centro do átomo.
A metafísica do espírito, ao longo do século XIX, teve que ceder  lugar, a uma metafísica da matéria; intelectualmente falando, isto não é mais que um capricho engraçado, mas do ponto de vista psicológico significa uma revolução inaudita na visão do mundo: o mais além toma assento neste mundo; o fundamento das coisas, a distribuição dos fins, as significações últimas, não devem sair das fronteiras empíricas; se dermos crédito à razão ingénua, parece que toda a interioridade se converte em exterioridade visível, e o valor não obedece senão ao critério do suposto acontecimento.

"Los complejos y el inconsciente", Carl Jung, Alianza Editorial, 1986, Madrid, p.9,10 e 11

Tradução do espanhol Helena Serrão
Título original: "L´homme à decouverte de son âme"


O nosso espírito de época resiste a qualquer reflexão intelectual, mesmo capaz ou brilhante, a imunidade do espírito de época torna-o pesado e, se neste texto são salientes os seus aspectos irracionais, ele não se reduz à sua irracionalidade, pois pode ser analisado e compreendido. Logo, resta-nos continuar a resistir à uniformização, não embalar em apologias ou críticas monocórdicas mas não deixar de admitir, por mais que nos doa: o pensar geral, não se modifica com as mais brilhantes reflexões, é preciso mais, muito mais.

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