(…) Muitos
filósofos advogaram a igualdade na consideração de interesses, de uma forma ou
de outra, como um princípio moral fundamental. Só alguns reconheceram que o princípio tem aplicações para além da
nossa espécie - sendo Jeremy Bentham, o pai do moderno utilitarismo, um desses filósofos.
Numa passagem visionária, redigida numa altura em que os escravos africanos nas
possessões britânicas ainda eram tratados de uma forma muito semelhante àquela
como tratamos hoje os animais não humanos, Bentham escreveu: “Talvez chegue o
dia em que a restante criação animal venha a adquirir os direitos de que só
puderam ser privados pela mão da tirania. Os Franceses já descobriram que o
negro da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem remédio aos caprichos
de um torcionário. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a
pilosidade da pele ou a terminação do *osso sacrum* (Osso situado entre o
cóccix e as vértebras lombares, a terminação do sacro é, precisamente, o
cóccix, que nos animais não humanos corresponde à cauda) são razões igualmente
insuficientes para abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa
poderia traçar uma linha insuperável? Será a faculdade da razão ou, talvez, a
faculdade do discurso? Mas um cavalo adulto é, para lá de toda a comparação, um
animal mais racional, assim como mais sociável, que um recém-nascido de um dia,
de uma semana ou mesmo de um mês. Mas suponhamos que não era assim; de que
serviria? A questão não está em saber se podem pensar ou falar, mas sim se
podem sofrer. (…)Bentham aponta a capacidade para sofrer como a característica vital
que confere a um ser o direito à consideração igualitária. A capacidade para sofrer
ou, mais estritamente, para sofrer e/ou para a fruição ou para ser feliz não é
apenas mais uma característica, como a capacidade para a linguagem ou para a
matemática avançada. Bentham não diz que aqueles que tentam traçar a "linha
insuperável" (que determina se os interesses de um ser devem ser considerados)
escolheram, por mero acaso, a característica errada. A capacidade de sofrer e
de gozar as coisas constitui um pré requisito para ter quaisquer interesses, uma condição que tem de ser
satisfeita antes de podermos falar de interesses com algum sentido. Seria
descabido dizer que não é do interesse de uma pedra levar um pontapé de uma
criança na rua. Uma pedra não possui interesses porque não sofre. Nada do que
lhe possamos fazer tem qualquer importância para o seu bem-estar. Um rato, pelo
contrário, tem de facto um interesse em não ser molestado, porque os ratos
sofrem se forem tratados desse modo. Se um ser sofre, não pode haver
justificação moral para a recusa de tomar esse sofrimento em consideração.
Independentemente da natureza do ser, o princípio da
igualdade exige que o sofrimento seja levado em linha de conta em termos igualitários
relativamente a um sofrimento semelhante de qualquer outro ser, tanto quanto é
possível fazer comparações aproximadas. Se um determinado ser não é capaz de
sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada a tomar em consideração
É por isso que o limite da senciência (para usar o termo como uma abreviatura
conveniente, ainda que não estritamente precisa, da capacidade de sofrer ou de
sentir prazer ou felicidade) é a única fronteira defensável da preocupação pelo
interesse alheio. Marcar esta fronteira com características como a inteligência
ou a racionalidade seria marcá-la de modo arbitrário. Por que motivo não
escolher uma outra característica qualquer, como, por exemplo, a cor da pele? Os
racistas violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses de
membros da sua própria raça quando há um confronto entre os seus interesses e
os de outra raça. Os racistas de ascendência europeia não aceitavam geralmente
que a dor contasse tanto quando sentida pelos Africanos, por exemplo, como
quando sentida pelos Europeus. Do mesmo modo, aqueles a quem
chamo"especistas" atribuem maior peso aos interesses dos membros da
sua própria espécie quando há um conflito entre esses interesses e os das
outras espécies. Os “especistas” humanos não aceitam que a dor sentida por
porcos ou ratos seja tão má como a dor sentida por seres humanos. (…), é claro
que a dor sentida por um rato não é tão má como a dor sentida por um ser
humano. Os seres humanos têm maior consciência do que lhes está a acontecer e
este facto torna o seu sofrimento mais intenso. Não se pode comparar a dor de
uma pessoa, digamos, que morre de cancro numa agonia prolongada com a de um
rato de laboratório que sofre o mesmo destino."Aceito perfeitamente que,
no caso descrito, a vítima humana de cancro sofre mais que a vítima não humana.
Este facto não põe em causa a igualdade na consideração de interesses dos não
humanos. Significa antes que temos de ter cuidado quando comparamos os
interesses de diferentes espécies. Em algumas situações, um membro de uma
espécie sofrerá mais do que o de outra. Neste caso devemos continuar a aplicar
o princípio da igualdade na consideração de interesses, mas o resultado dessa
atitude consiste, é claro, em dar prioridade ao alívio do maior sofrimento.
Peter Singer, Ética Prática
Fundamentar a moral na razão, ao modo de Kant, a partir de uma forma que é universal, uma vez que somos todos dotados de razão independentemente da raça, circunstância etc, parece-me sólido. Podemos compreender a moral como tendo inquestionável validade num quadro deste género. Mas quando utilizamos a razão na justificação de certos actos, tentando explicar porque é que são correctos ou incorrectos, através de argumentos, fica-nos aquela estranha sensação de que o contrário é igualmente argumentável, logo, igualmente moral, é o que acontece com estes argumentos de Peter Singer. Traçar uma fronteira entre quem/o quê merece ter dignidade moral e quem/o quê não a merece ter e, por isso, está ausente do quadro de direitos e deveres, é sempre um acto à partida arbitrário e cuja justificação é tão aceitável como outra que estabeleça outros critérios para demarcar a fronteira; se sofre, se tem linguagem, se tem inteligência, se é capaz de comunicação etc. Qualquer destes critérios tem um número de contra exemplos suficiente para o enfraquecer e, sendo assim, não há mesmo qualquer argumentação, no campo moral, que tenha a força de uma evidência ou implique uma plataforma comum, racionalmente aceitável por todos os sujeitos morais, ora isto enfraquece também a moral, tornando-a campo de disputa infindável e sem consenso. Por outro lado, este tipo de argumentação parece-me inútil uma vez que se utiliza para concluir algo que é evidente, isto é que os animais sofrem e como tal não devemos inflingir-lhe sofrimento. É como explicar a alguém que tem de viajar de avião que este gasta muito combustível e é poluente. A verdade é que quem viaja de avião já o sabe, por isso argumentar acerca de algo que já se sabe, não me parece um bom caminho.
Helena Serrão
Helena Serrão