quinta-feira, dezembro 27, 2012

A fundamentação do conhecimento



Quem quiser seriamente tornar-se filósofo deve, uma vez na vida, retirar-se para dentro de si mesmo e em si tentar o derrube e todas as ciências existentes e a sua reconstrução. A filosofia é um assunto inteiramente pessoal de quem filosofa. Trata-se da sua sapientia universalis, isto é, do seu saber em busca do universal – mas de um saber científico genuíno, pelo qual ele desde início e em cada passo se responsabiliza absolutamente em virtude das suas razões absolutamente evidentes. Só posso tornar-me verdadeiro filósofo pela minha livre decisão de querer viver para este objectivo. Se a tal me decidi, se, portanto, optei pelo começo em absoluta pobreza e pelo derrube, então a primeira coisa a fazer é, decerto, reflectir como é que poderei encontrar o começo absolutamente seguro e o método da progressão, sem qualquer apoio da ciência existente. As meditações cartesianas não pretendem, pois, ser apenas um assunto privado do filósofo Descartes, mas o protótipo das meditações necessárias a todo o principiante em geral da filosofia.
Se atendermos ao conteúdo das meditações, hoje para nós tão estranho, bem depressa se leva a cabo um retrocesso ao ego filosofante num segundo e mais profundo sentido. É o conhecido retrocesso,originador da epoché, ao ego das puras cogitationes. É o ego que a si se encontra como o único ente apodicticamente certo, enquanto põe fora de vigência a existência do mundo, como não garantida frente à dúvida possível.
Ora este ego realiza, antes de mais, um filosofar seriamente solipsista. Procura caminhos apodicticamente certos pelos quais lhe seja patente uma exterioridade objectiva na pura interioridade.
Isto acontece em Descartes do modo que sabemos, ou seja, deduz-se primeiro a existência e a veracitas de Deus; e, em seguida, por seu intermédio, a natureza objectiva, o dualismo das substâncias, em suma, o terreno objectivo das ciências positivas e estas mesmas.
Todos os modos de inferência ocorrem à luz de princípios que são imanentes, inatos ao ego. Até aqui Descartes. Agora perguntamos: vale realmente a pena rastrear de forma crítica o significado eterno destes pensamentos? São eles adequados para insuflar forças vivas ao nosso tempo? É de ponderar, em todo o caso, que as ciências positivas, que everiam obter mediante estas meditações uma fundamentação absolutamente racional, se tenham tão pouco interessado por ela. Na nossa época, e não obstante o desenvolvimento fulgurante dos três séculos, sentem-se decerto inibidas pela falta de claridade dos seus fundamentos. Mas não lhes ocorre na remodelação dos seus conceitos básicos recorrer às meditações cartesianas. Por outro lado, é de monta que as meditações tenham feito época na filosofia num sentido muito singular e, sem dúvida, precisamente devido à sua retrocessão ao ego. Descartes inaugura, de facto, uma filosofia de tipo inteiramente novo. Esta, ao modificar todo o seu estilo, empreende uma viragem radical do objectivismo ingénuo para um subjectivismo transcendental, que em tentativas novas e, no entanto, sempre insuficientes, aspira a uma forma final
pura. Não deveria, porventura, esta tendência contínua trazer em si um sentido eterno, para nós uma tarefa ingente, a nós imposta pela própria história, e na qual somos todos chamados a colaborar?
A fragmentação da filosofia contemporânea no seu afã desnorteado dá-nos que pensar. Não há que atribuí-la ao facto de as forças provenientes das Meditações de Descartes terem perdido a sua vivacidade originária? Não deveria o único renascimento fecundo, que estas meditações despertam, consistir não em retomá-las, mas em descobrir primeiro na retrocessão ao ego o sentido mais profundo do seu radicalismo e os valores eternos que daí brotam? De todas as maneiras indica-se assim o caminho que levou à fenomenologia transcendental.
 
Edmund Husserl, Conferências de Paris,
Tradução Artur Morão
 

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