Se
atendermos ao conteúdo das meditações, hoje para nós tão estranho,
bem depressa se leva a cabo um retrocesso ao ego filosofante num
segundo e mais profundo sentido. É o conhecido retrocesso,originador
da epoché, ao ego das
puras cogitationes. É o ego
que
a si se encontra como o único ente apodicticamente certo, enquanto
põe fora de vigência a existência do mundo, como não garantida
frente à dúvida possível.
Ora
este ego realiza, antes de mais, um filosofar
seriamente solipsista.
Procura caminhos apodicticamente certos pelos quais lhe
seja patente uma exterioridade objectiva na pura interioridade.
Isto
acontece em Descartes do modo que sabemos, ou seja, deduz-se primeiro
a existência e a veracitas de
Deus; e, em seguida, por seu
intermédio, a natureza objectiva, o dualismo das substâncias, em
suma, o terreno objectivo das ciências positivas e estas mesmas.
Todos
os modos de inferência ocorrem à luz de princípios que são imanentes,
inatos ao ego. Até
aqui Descartes. Agora perguntamos: vale realmente a pena rastrear
de forma crítica o significado eterno destes pensamentos? São
eles adequados para insuflar forças vivas ao nosso tempo? É
de ponderar, em todo o caso, que as ciências positivas, que everiam
obter mediante estas meditações uma fundamentação absolutamente racional,
se tenham tão pouco interessado por ela. Na nossa
época, e não obstante o desenvolvimento fulgurante dos três séculos,
sentem-se decerto inibidas pela falta de claridade dos seus fundamentos.
Mas não lhes ocorre na remodelação dos seus conceitos básicos
recorrer às meditações cartesianas. Por
outro lado, é de monta que as meditações tenham feito época
na filosofia num sentido muito singular e, sem dúvida, precisamente devido
à sua retrocessão ao ego. Descartes
inaugura, de facto,
uma filosofia de tipo inteiramente novo. Esta, ao modificar todo
o seu estilo, empreende uma viragem radical do objectivismo ingénuo
para um subjectivismo transcendental,
que em tentativas novas
e, no entanto, sempre insuficientes, aspira a uma forma final
pura.
Não
deveria, porventura, esta tendência contínua trazer em si um
sentido eterno, para nós uma tarefa ingente, a nós imposta pela própria
história, e na qual somos todos chamados a colaborar?
A
fragmentação da filosofia contemporânea no seu afã desnorteado dá-nos
que pensar. Não há que atribuí-la ao facto de as forças provenientes
das Meditações de Descartes terem perdido a sua vivacidade originária?
Não deveria o único renascimento fecundo, que
estas meditações despertam, consistir não em retomá-las, mas em
descobrir primeiro na retrocessão ao ego o sentido mais
profundo do
seu radicalismo e os valores eternos que daí brotam? De todas
as maneiras indica-se assim o caminho que levou à fenomenologia transcendental.
Edmund Husserl, Conferências de Paris,
Tradução Artur Morão
Tradução Artur Morão
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