O
grande matemático Lagrange disse há já muito tempo que a Natureza
simplesmente não faz caso das dificuldades que coloca aos
cientistas, cuja missão – como declarou noutra ocasião –
consiste na procura da simplicidade, mas também em desconfiar dela.
Quer isto dizer que o melhor – e porventura o único – meio de
alcançar uma simplicidade congruente com os factos é lidar de
frente com as maiores complexidades, mediante o recurso extremamente
prático de tratar a dificuldade per se como
um dato fundamental, que não deve ser evitado, mas aproveitado
ao máximo – não deve ser explicado, mas utilizado para explicar
dados aparentemente mais simples.
Os
primeiros capítulos deste livro, que destacam a angústia causada
pelos dados da ciência do comportamento, podem dar a impressão
errónea de que a objectividade é impossível a
priori
na
investigação da ciência do comportamento e que para reduzir ao
mínimo as deformações devidas à subjectividade devemos interpor
mais e mais filtros
– testes, técnicas de entrevista, acessórios e outros artifícios
heurísticos – entre
nós e os nossos objectos.
Inclusive, poderia parecer que o melhor “observador” é uma
máquina e que o observador humano deveria aspirar a uma espécie de
invisibilidade que – caso fosse bem sucedido – eliminaria o
observador da situação observacional.(...)
Não
se faz boa ciência ignorando os seus dados mais fundamentais e mais
característicos que constituem, de forma muito específica,
dificuldades que lhe são inerentes.
O especialista do comportamento não pode ignorar a interacção
do sujeito e do observador,
esperando que, se fingir durante bastante tempo que ela não existe,
esta acabe por desaparecer completamente.
A
recusa em tirar partido de maneira criativa dessas dificuldades mais
não faz do que conduzir à recolha de dados cada vez menos
pertinentes, cada vez mais segmentários, periféricos e mesmo
triviais, que não lançam qualquer luz sobre o que há de vivo no
organismo ou de humano no homem. Por isso, o cientista deve deixar de
destacar exclusivamente a sua manipulação do sujeito e deve, ao
mesmo tempo – e por vezes principalmente –, esforçar-se por se
compreender a si mesmo enquanto observador. Nesse sentido, toda a
experiência praticada sobre um rato
é
também uma experiência praticada sobre o observador, cujas
angústias e manobras de diversão, tal como a sua estratégia de
investigação, percepção de dados e tomada de decisões
(interpretações dos dados),
podem
lançar mais luz sobre a natureza do comportamento em geral do que a
observação dos ratos – e até de outros seres humanos – poderia
fazer.
Isto
implica que as dificuldades tradicionais da ciência do comportamento
não se devem apenas
a uma determinação pouco ponderada do lugar e natureza da
demarcação entre dados “reais” e produtos “incidentais” ou
epifenomenais da estratégia de investigação. Indica que o sujeito
mais apto a manifestar um comportamento cientificamente utilizável é
o próprio observador. Isto significa que uma experiência praticada
sobre ratos, uma expedição antropológica, ou uma psicanálise,
contribuem mais para a compreensão do comportamento se forem
encaradas como fonte de informação acerca do psicólogo dos
animais, do antropólogo e do psicanalista, do que se forem
consideradas tão-somente como uma fonte de informação acerca dos
ratos, dos primitivos ou dos pacientes. Numa verdadeira ciência do
comportamento, os primeiros dados são básicos; os outros são
epifenomenais… ou seja, falando com clareza, subprodutos que,
naturalmente, também merecem
ser
explorados.
Não
é o estudo do sujeito,
mas
do observador,
que
nos faculta o acesso à essência
da
situação observacional.
Os
dados da ciência do comportamento são então triplos:
1]
O comportamento do sujeito.
2]
As “perturbações” produzidas pela existência do observador e
pelas suas actividades no quadro da observação.
3]
O comportamento do observador: as suas angústias, as suas manobras
defensivas, a sua estratégia de investigação, as suas “decisões”
(=atribuição de significado às suas observações).
Georges Devereux,
Da Ansiedade ao Método nas Ciências do
Comportamento[1]
Tradução de Ana Rita Araújo
3 comentários:
Olá,poderia me ajudar em uma pergunta?Não consigo responder,é uma das que estão em meu trabalho,não precisa responder a questão,apenas me ajude a entender,me de alguma luz kkk.Não encontro em nenhum lugar,não sei.
Qual a importância da antropologia para o desenvolvimento da filosofia moderna,principalmente das correntes racionalistas e empíricas?
Só agora vi a pergunta, desculpe o atraso. Refere-se à antropologia enquanto ciência autónoma ou à antropologia enquanto estudo do conhecimento a partir de um primado humano? Só a segunda questão faz sentido nesse aspecto os autores modernos, Descartes, David Hume, Kant são os iniciadores desse processo de pensar o conhecimento enquanto conhecimento humano, feito pelo homem e esclarecedor sobre o modo como este (homem) é e quais os seus limites, que são também os limites do próprio conhecimento. Antes da Filosofia moderna o conhecimento era encarado como algo que existia independentemente do homem, ora como um conjunto de ideias a que ele acedia mediante um trabalho racional, os arquétipos de Platão, ora como uma revelação acessível mediante a fé, mas não como algo produto do pensamento humano, antes como algo pré-existente a tal pensamento. Com os filósofos modernos o conhecimento é encarado como produto humano, fruto da razão humana ou da sua experiência ou de ambas. Não sei se esclareci, obrigada por nos contactar.
Eu sei que talvez seja pouco provável, ou mesmo cômodo, a resposta, mas cá vai a pergunta: Existe alguma forma da senhora me disponibilizar virtualmente esse livro do Devereux? Eu estou fazendo um artigo com uma aplicação filosófica da teoria do caos sobre a epistemologia do Direito, e esse livro me seria (por mais estranho que possa parecer) bastante útil. Obrigado ;D
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