Encontramos uma conexão ainda mais directa entre o conceito de acção e conceitos como responsabilidade, culpa, bem e mal. Se há algo pelo qual somos responsáveis, então deve haver alguma coisa que depende de nós, algo que podemos fazer ou que podíamos ter feito. Se estas palavras têm sentido, então nem tudo pode depender das circunstâncias ou dos meros acontecimentos. Queremos que tenham sentido, por isso queremos que existam acções.
Mas haverá alguma acção? Esta questão pode parecer bizarra, até porque haverá algo mais evidente do que isto? A filosofia, no entanto, não se permite ficar satisfeita com esse nível da evidência. Seria seguramente falso negar que desenhamos uma linha ténue entre acontecimentos e aquilo que pensamos serem acções. Mas isto não é uma prova nem da validade desta distinção nem da existência de acções. Podemos estar enganados. A filosofia da acção começa quando paramos de atribuir valor a essas pressuposições diárias.
Se existem ou não acções não é algo que possamos responder através da observação directa. Aqueles que duvidam da existência de acções não estão a questionar aquilo que todos percebem. Estão a questionar o facto de saber se os conceitos que habitualmente usamos para descrever e interpretar essas observações são apropriados ou até consistentes. Se não são, leva-nos a uma resposta negativa à nossa questão: se acção é um conceito inconsistente, não pode haver acções, do mesmo modo que não pode haver círculos quadrados. Logo, a própria análise do conceito de acção é um tópico central da filosofia da acção.
Suspeitas acerca da própria consistência do conceito de acção, bem como acerca da distinção entre acções e acontecimentos, podem aparecer mesmo ao nível das perspectivas científicas. Se levamos a ciência a sério, então somos obrigados a reflectir sobre a possibilidade de reconciliar a visão científica com a concepção comum da realidade, já que elas parecem ser, se não contraditórias, pelo menos altamente díspares. As perspectivas científicas congratulam-se com acontecimentos explicados por outros acontecimentos anteriores ou por outros acontecimentos simultâneos com a ajuda de leis. Mas se pensarmos em nós como agentes, concebemo-nos como seres capazes de iniciar alterações no mundo independentemente da sua história prévia. Agentes e acções, então, enfrentarão dificuldades se procurarem um lugar no plano científico.
A atitude de suspeição ou de cepticismo relativamente à acção apresenta-se de formas diversas, desde propostas eliminativistas até propostas mais ou menos reducionistas. Para que o leitor fique com uma ideia do que possa ser uma atitude reducionista, comecemos com um episódio que ninguém hesitaria classificar como acção: beber um copo de água. Que direito temos de chamar isto de acção e não apenas de acontecimento? Onde reside o carácter adicional deste episódio? O que fiz eu? A água entra na minha boca como efeito da gravidade. Este movimento, por sua vez, foi provocado pelo movimento do copo. Onde está a acção aqui? Bem, alguém pode sempre dizer que se causei o acontecimento, então agi. Mas pense que este movimento pode ser exactamente causado pelo movimento da minha mão e do meu braço, que por sua vez foram causados por alguns movimentos de contracção dos músculos, que por sua vez foram provocados por alguns disparos neuronais, e assim sucessivamente. Uma acção assim parece dissolver-se e reduzir-se a uma sequência de acontecimentos. A nossa distinção vulgar entre acções e acontecimentos começa a desvanecer-se; parece que chamamos "acção" ao que na realidade não é mais do que uma série de eventos causalmente relacionados. Apelar para desejos não resolve a questão, já que o nosso desejo por água é provavelmente um estado causado por privação orgânica. A cadeia de eventos estende-se cada vez mais no passado e parece nada haver que nós, como agentes, tenhamos iniciado, nenhuma acção, só sempre mais e mais acontecimentos. Então as acções parecem não ser outra coisa senão sequências específicas de acontecimentos.
Carlos J. Moya
O conceito de acção parece multiplicar-se em justificações na proporção directa em que nenhuma definição satisfaz, são todas incompletas, mais que incompletas, insatisfatórias. Os próprios alunos já colocaram a questão: "Estou a mastigar". É um acontecimento um movimento que altera o mundo, isto é que é visível. A noção de que aquele movimento não é um acontecimento mas uma acção, reside na suposição de que aquele que está a mastigar não é uma máquina mas um ser dotado de uma consciência intencional, esse dado pode levar-nos a distinguir a acção de um acontecimento através das razões e intenções que residem no agente. Todavia em nada pode alterar este acontecimento: "Mastigar" o facto do agente dar a este mastigar o significado de estar a tomar o pequeno almoço. A sua acção continua a ser mastigar, ou o acontecimento que está a ocorrer e que nenhuma descrição intencional pode alterar é a de que " Estou a mastigar"
Helena Serrão
Fotografia de Ara Guler
Helena Serrão
Fotografia de Ara Guler