A fonte imediata da obra de arte é a capacidade
humana de pensar, da mesma forma que a “propensão
para a troca e o comércio” é a fonte dos objectos de uso. Tratam-se de
capacidades do homem, e não de meros atributos do animal humano, como
sentimentos, desejos e necessidades, aos quais estão ligados e que muitas vezes
constituem um só conteúdo. Esses atributos humanos são tão alheios ao mundo que
o homem cria como seu lugar na terra, como os atributos correspondentes de outras
espécies animais; se tivessem de constituir um ambiente fabricado pelo homem
para o animal humano, esse ambiente seria um não-mundo, resultado de emanação e
não de uma criação. A capacidade de pensar relaciona-se com o sentimento,
transformando a sua dor muda e inarticulada, do mesmo modo que a troca
transforma a ganância crua do desejo e o uso transforma o anseio desesperado da
necessidade — até que todos se tornem dignos de entrar no mundo transformados
em coisas, reificados (coisificados). Em cada caso, uma capacidade humana que, por sua própria
natureza, é comunicativa e voltada para o mundo, transcende e transfere para o
mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser. (…)
O pensamento difere da cognição. Fonte das obras de
arte, o pensamento manifesta-se, sem transformação ou transfiguração, em todas
as grandes filosofias, ao passo que a principal manifestação dos processos
cognitivos, através dos quais adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências.
A cognição tem sempre um fim definido, que pode resultar de considerações práticas
ou de “mera curiosidade”; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cognitivo
termina. O pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou propósito além de si
mesmo, e não chega sequer a produzir resultados; não só a filosofia utilitária
do homo faber, mas os homens de acção e os cientistas que procuram
resultados, nunca se cansaram de dizer quão “inútil” é o pensamento –
realmente, tão inútil como as obras de arte que inspira. O pensamento não pode
sequer alegar que fez estas obras de arte, pois elas, como os grandes sistemas
filosóficos, não podem ser propriamente chamadas resultado do pensamento puro,
estritamente falando, uma vez que é precisamente o processo de pensar que o artista
ou o filósofo que escreve deve interromper e transformar para reificar a sua
obra. A actividade de pensar é tão incessante e repetitiva coo a própria vida;
perguntar se o pensamento tem algum significado equivale a recair no mesmo
enigma irrespondível do significado da vida; os processos do pensamento
impregnam tão intimamente toda a existência humana que o seu começo e o seu fim
coincidem com o começo e o fim da própria existência humana. Assim, embora o
pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do hommo faber, não
é de modo algum uma sua prerrogativa; começa a afirmar-se como fonte de
inspiração do hommo faber apenas quando este se ultrapassa, por assim
dizer, e se põe a produzir coisas inúteis, objectos que não têm qualquer relação
com as necessidades materiais ou intelectuais, com as necessidades físicas do
homem ou com a sua sede de conhecimento. Por outro lado, a cognição é
pertinente a todos os processos, não apenas intelectuais ou artísticos como a
própria fabricação, ela é um processo que tem um começo e um fim, cuja
utilidade pode ser posta à prova e que, se não produzir resultados , terá
fracassado, como fracassa a arte do carpinteiro quando ele fabrica uma mesa de
duas pernas. Os processos cognitivos das ciências não diferem basicamente da
função da cognição na fabricação; os resultados produzidos através da cognição
são acrescentados ao artifício humano como todas as outras coisas.
Hannah Arendt, A condição Humana, Relógio D´Agua,
Lx,2001, pag. 208,212.
Foto: Josef Koudelka, 1938
O pensamento como mais vasto que a actividade de cognição e ao contrário desta como improdutivo, no seu labor incessante é basicamente inútil, do ponto de vista da produção de coisas mas, por outro lado, é a origem das coisas perenes como arte e filosofia que se juntam aos artefactos humanos quando se materializam mas que se distinguem destes (objectos de utilidade)por serem mais duráveis ou por instaurarem no mundo algo único, semelhante ao imortal no mundo produzido onde a transformação e a destruição são constantes.