Há acções
intrinsecamente erradas ou será que são erradas apenas por causa das suas
consequências? Vamos supor que ao torturar alguém estamos a salvar uma vida
humana, ou dez, ou cem. Se for assim, deveria a tortura ser moralmente
admissível ou até mesmo imperativa? Vamos supor que com a pena de morte
estamos, de facto, a impedir o assassínio e que cada execução pode salvar duas
vidas de inocentes, ou três, ou uma dúzia. Se for assim, deveria a pena de
morte ser moralmente admissível ou talvez até imperativa? E como deveríamos
estar a responder a estas perguntas?
Numa certa perspectiva, o melhor método, talvez o
único viável, seja começar por examinar as nossas intuições. Algumas pessoas
afirmarão convictamente que é errado que um governo execute ou torture pessoas,
mesmo que com tal consiga travar o crime. Para algumas pessoas, é um dado
adquirido que um país não deve bombardear uma cidade estrangeira e tirar a vida
a milhares de civis, mesmo que venha a poupar muitas mais vidas. Se nos
sentirmos inclinados a concordar com estas conclusões, podemos tentar
testá-las, nomeadamente consultando uma vasta gama de casos hipotéticos. O
processo pode ser-nos útil para apurar as nossas intuições. E até ajudar a
perceber a sua concordância e como se relacionam com os valores universais que
aparentemente as justificam e os quais, também elas, acabam por justificar.
Muitos filósofos sentem-se inclinados a ver as coisas
desta forma. Para testar as nossas intuições morais e perceber mesmo o que a
moralidade exige, ocuparam-se com uma série de dilemas, na sua maioria
conhecidos como Dilemas do Trólei. Eis dois dos mais importantes:
1. O Problema do Trólei. Está em pé, ao lado de uma
linha férrea, e vê um comboio a aproximar-se de si. Percebe que os seus travões
falharam. Há cinco pessoas amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser que tome
uma atitude. E você está mesmo ao lado de um interruptor. Se o puxar, o comboio
muda de linha. O problema é que há uma pessoa amarrada nessa outra linha e ao
puxar o interruptor irá matá-la. Deve puxá-lo?
2. O Problema da Ponte. Está numa ponte pedonal a
olhar para a linha férrea e vê um comboio aproximar-se. Percebe que os seus
travões falharam. Há cinco pessoas amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser
que tome uma atitude. Um homem gordo está ao seu lado, debruçado na ponte,
também a ver o comboio. Se o empurrar, ele vai cair e estatelar-se nos carris.
E porque é obeso, o seu corpo irá travar o comboio e assim salvar as cinco
pessoas — apesar de ele próprio morrer. Deverá empurrá-lo?
As intuições da maioria das pessoas sobre estes dois
dilemas são muito claras. No Problema do Trólei, deveria puxar o interruptor;
já no Problema da Ponte, não deveria empurrar o homem gordo. A questão é: o que
diferencia estes dois casos? Uma vez identificada a resposta, talvez estejamos
em condições de esclarecer o que está bem e o que está mal — não só sobre
tróleis e pontes pedonais, mas sobre os pilares onde assenta a ética e os
limites ao pensamento utilitarista. E, na volta, pode-se responder a uma vasta
gama de questões que se colocam na vida real, questões que envolvem não apenas
os temas da tortura, da pena de morte e dos conflitos armados, mas também o uso
legítimo da coerção, das nossas obrigações para com estranhos e, no que
respeita a temas de saúde e da segurança, onde e como devemos situar as
análises de custo-benefício.
A
"mãe" do dilema
Em Would You
Kill The Fat Man (Princeton University Press), um livro elegante,
lúcido e amiúde divertido, David Edmonds, um académico da Universidade de
Oxford, explora os Problemas do Trólei e da Ponte e todos os comentários
brilhantes que já foram proferidos à volta do tema. Philippa Foot, que ensinou
Filosofia em Oxford entre 1940 e meados de 1970, foi a “mãe” do Dilema do
Trólei (e também a neta de Grover Cleveland, por duas vezes Presidente dos
Estados Unidos no século XIX).
Naquele período, Oxford era dominada por homens, mas
três dos seus mais proeminentes filósofos eram mulheres — Foot, Elizabeth
Anscombe (que foi recrutada pela própria Foot) e Iris Murdoch. Edmonds explica
que as relações entre elas, filosóficas e não só, não estavam imunes a
complicações várias. M.R.D. Foot, que veio a tornar-se o marido de Philippa,
foi um dos muitos amantes renegados de Murdoch. O casamento dificilmente
aguentou os embates dessa relação (“Perder-te & perder-te dessa maneira foi
uma das coisas mais terríveis que me aconteceram”, escreveu Murdoch a
Philippa). Depois de M.R.D. Foot deixar a mulher, ela e Murdoch voltaram a ser
amigas (e tiveram um breveaffair).
Anscombe disse uma vez que Foot era a única filósofa
de Moral a quem valia a pena estar atento em Oxford, mas ambas tiveram
profundas divergências sobre contracepção e aborto (para Foot, moralmente
aceitáveis). Anscombe discordava veementemente usando mesmo a expressão
“assassina” para descrever “quase todas as mulheres que escolhem abortar”. Para
Foot, Anscombe era “mais papista do que o Papa”.
O Dilema do Trólei germinou nestes debates. Assombrada
pela Segunda Guerra Mundial e os seus horrores, Foot rejeitava a perspectiva
que grassava nalguns círculos em Oxford de que os julgamentos éticos não
representam mais do que declarações de preferência pessoal. Assim como
reivindicava que a melhor forma de os analisar era perceber como é que palavras
mais relevantes são usadas na linguagem comum. Foot acreditava que os
julgamentos éticos podem ser questões de princípio. Em 1967, publicou um artigo
— “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect”, em tradução
literal, “O problema do aborto e a Doutrina do Duplo Efeito” — uma teoria que
se baseia no pressuposto de que um mau resultado pode ser aceite moralmente se
for apenas efeito colateral de uma boa acção.
A doutrina do Duplo Efeito baseia-se no pressuposto de
que um mau resultado pode ser aceite moralmente se for apenas efeito colateral
de uma boa acção
A Doutrina do Duplo Efeito é muito conhecida no
contexto do pensamento católico. Distingue de forma precisa entre o que podem ser
danos causados de uma forma intencional — não admissíveis — e os que
simplesmente podem vir a acontecer — admissíveis. De acordo com a teologia
católica, uma mulher pode fazer uma histerectomia para retirar um tumor que põe
em perigo a sua vida, mesmo que tal signifique que o feto morra. A razão que
está por trás é salvar-lhe a vida, não a de matar o feto. Para explorar esta
distinção, Foot introduziu uma série de dilemas hipotéticos, incluindo o
Problema do Trólei e o Caso do Transplante — que questiona se deve um cirurgião
matar um homem jovem com a intenção de preservar os seus órgãos porque irão
salvar cinco pessoas em risco de vida. Para Foot, é claro que tal não deverá
ser permitido ao cirurgião, ainda que vidas possam ser salvas. (Curiosamente, Foot
não chega a nenhuma conclusão sobre se uma mulher deve fazer um aborto mesmo
quando a sua vida e a saúde não correm perigo.)
Talvez a Doutrina do Duplo Efeito possa explicar
porque é correcto puxar o interruptor no Problema do Trólei (quando a intenção
é não matar ninguém) mas já é errado matar um jovem homem no Caso do
Transplante (cuja morte é intencional). Mas, numa argumentação mais intrincada,
Foot conclui, por fim, que, nestes casos, a melhor forma para explicar as
nossas intuições contraditórias será equacionar, não entre os efeitos
intencionais e os previsíveis, mas antes entre obrigações negativas (como o
imperativo de não matar uma pessoa) e as positivas (como a de salvar uma
pessoa). Num artigo escrito posteriormente, Foot enfatizava que no Problema do
Trólei a questão reside em redireccionar uma ameaça latente, que poderá ser
moralmente aceitável (mais do que criar uma nova ameaça, como acontece no Caso
do Transplante).
O Problema da Ponte foi concebido por Judith Tarvis
Thomson, uma filósofa do Massachusetts Institute of Technology, e granjeou-lhe
fama. Ao impor uma distinção moral entre o Problema do Trólei e o Poblema da
Ponte, Thomson chamou a atenção para os direitos das pessoas. Na sua
perspectiva, o homem gordo tem o direito a não ser empurrado e morto, mas o
mesmo não é verdade para o infeliz que está amarrado ao carril no Problema do
Trólei. “A moral não nos exige que deixemos que um pesado fardo vindo do nada
caia para cima de cinco [pessoas], quando sabemos que o podemos fazer cair em cima
de apenas uma.” Um transeunte não pode empurrar alguém para a morte, mas pode,
legitimamente, procurar minizar os efeitos, “o número de mortes que serão o
resultado de uma ameaça que já existe”.
Quando Edmonds reflecte sobre estas questões do
trabalho de Thomson, diz que ela está a ser discípula de Emmanuel Kant, que
acreditava que as pessoas não devem ser apenas meios para atingir fins de
outrem. A própria Foot já se referia à “existência de uma moralidade que recusa
culpabilizar o sacrifício de um em prol do bem de muitos... [e] garante a cada
indivíduo um determinado espaço moral, um espaço que outros não devem invadir”.
Muitas pessoas acreditam que quando dizemos que é moralmente inaceitável
empurrar o homem gordo (ou roubar órgãos vitais, ou torturar ou executar
pessoas), estamos a dar respostas profundamente enraizadas no pensamento
kantiano, e têm toda a razão.
CASS R. SUNSTEIN