Gustav Klint, Vida e morte, 1916
A pressão da cultura
noutros sectores não acarreta consequências patológicas, mas manifesta-se
em deformações de carácter e na disponibilidade constante das pulsões inibidas
para abrir caminho na ocasião oportuna para a satisfação. Quem assim é forçado
a reagir permanentemente no sentido de prescrições que não são expressão das
suas tendências pulsionais vive, psicologicamente falando, muito cima dos seus
meios e pode qualificar-se objectivamente de hipócrita, seja ou não claramente
consciente desta diferença. É inegável que a nossa cultura actual favorece com
extraordinária amplitude este género de hipocrisia. Poderia arriscar-se a
afirmação de que se baseia nela e teria de se submeter a profundas
transformações, se os homens decidissem viver segundo a verdade psicológica.
Há, pois, incomparavelmente mais hipócritas da cultura do que homens verdadeiramente
culturais, e pode inclusive discutir-se o ponto de vista de se uma certa medida
de hipocrisia cultural não será indispensável para a conservação da cultura,
porque a aptidão cultural já organizada dos homens do presente não bastaria
talvez para esta realização.
Vimos que a coerção externa, exercida sobre o homem pela educação e pelo
meio ambiente, suscita uma ulterior transformação da sua vida pulsional no
sentido do bem, uma viragem do egoísmopara o altruísmo. Mas este não é o efeito necessário ou regular da coacção
exterior. A educação e o ambiente não se limitam a oferecer prémios de amor,
mas lidam também com prémios de outranatureza, com a recompensa e o castigo. Podem, pois, fazer que
o indivíduo submetido à sua influência se resolva a agir bem, no sentido
cultural, sem que nele tenha realizado um enobrecimento das pulsões, uma
mutação das tendências egoístas em tendências sociais.O resultado será, no conjunto, o mesmo; só em circunstâncias especiais
se tornará patente que um age sempre bem, porque a tal o forçam as suas
inclinações pulsionais, mas o outro só é bom porque tal conduta cultural traz vantagens aos seus intentos egoístas, e só
enquanto e na medida em que as procura. Nós, porém, com o nosso conhecimento
superficial do indivíduo, não temos meio algum de distinguir os dois casos, e o nosso optimismo induzir-nos-á decerto
a exagerar desmesuradamente o número dos homens transformados pela cultura. (…)
A pressão da cultura
noutros sectores não acarreta consequências patológicas, mas manifesta-se
em deformações de carácter e na disponibilidade constante das pulsões inibidas
para abrir caminho na ocasião oportuna para a satisfação. Quem assim é forçado
a reagir permanentemente no sentido de prescrições que não são expressão das
suas tendências pulsionais vive, psicologicamente falando, muito cima dos seus
meios e pode qualificar-se objectivamente de hipócrita, seja ou não claramente
consciente desta diferença. É inegável que a nossa cultura actual favorece com
extraordinária amplitude este género de hipocrisia. Poderia arriscar-se a
afirmação de que se baseia nela e teria de se submeter a profundas
transformações, se os homens decidissem viver segundo a verdade psicológica.
Há, pois, incomparavelmente mais hipócritas da cultura do que homens verdadeiramente
culturais, e pode inclusive discutir-se o ponto de vista de se uma certa medida
de hipocrisia cultural não será indispensável para a conservação da cultura,
porque a aptidão cultural já organizada dos homens do presente não bastaria
talvez para esta realização.
Sigmund Freud, Escritos sobre a guerra e a morte, 2009, Tradução de Artur Mourão, Lusosofia press, Covilhã, Pág 13,
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