Martin Buber, 1878/1965
O EU da palavra-princípio EU-TU é
diferente do EU do palavra-princípio EU-ISSO.
O EU da
palavra-princípio EU-ISSO aparece como egótico e toma
consciência de si como sujeito (de experiência e de utilização).
O EU da palavra-princípio
EU-TU aparece como pessoa e toma consciência como subjectividade, (sem genitivo
dela dependente).
O egótico
aparece na medida em que se distingue de outros egóticos.
A pessoa
aparece no momento em que entra em relação com outras pessoas.
O primeiro é a
forma espiritual da diferenciação natural, a segunda é a forma espiritual do vínculo
natural.
A finalidade da
separação é o experienciar e o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, “a
vida”, isto é, o contínuo morrer no decurso da vida humana.
A finalidade da
relação é o seu próprio ser, ou seja, o contacto com o TU. Pois, no contacto com
cada TU, toca-nos um sopro da vida eterna.
Quem está na
relação participa de uma actualidade, quer dizer, de um ser que não está
unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda actualidade é um agir do qual EU participo
sem poder dele me apropriar. Onde não há participação não há actualidade. Onde
há apropriação de si não há actualidade. A
participação é tanto mais perfeita, quanto o contacto do TU é mais imediato.
O EU é actual através de sua
participação na actualidade. Ele se torna mais actual quanto mais completa é a
participação.
Mas o EU que se
separa do evento de relação em direcção da separação, consciente desta
separação, não perde sua actualidade. A participação permanece nele, conservada
como potencialidade viva; ou então, em outro termo usado quando se trata da
mais elevada relação e que pode ser aplicado a todas as relações, “a semente
permanece nele”. É este o domínio da subjectividade, onde o EU toma consciência
simultaneamente tanto de seu vínculo quanto de sua separação. A autêntica subjectividade
só pode ser compreendida de um modo dinâmico, como a vibração de um EU no seio
de sua verdade solitária. É aqui, também, o lugar onde irrompe e cresce o
desejo de uma relação cada vez mais elevada e absoluta, o desejo de uma
participação total com o Ser. Na subjectividade amadurece a substância
espiritual da pessoa.
A
pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como
um ente. O egótico toma consciência de si como um ente-que-é-assim e não-de-outro-modo.
A pessoa diz: “Eu sou”, o egótico diz: “eu sou assim”. “Conhece-te a ti mesmo”
para a pessoa significa: conhece-te como ser; para o egótico: conhece o teu
modo de ser. Na medida em que
o egótico se afasta dos outros,
ele se distancia do Ser.
Com isso não se quer dizer que a
pessoa “renuncie” ao seu modo de ser específico, mas somente isso: este não é
somente o seu ponto de vista, mas a forma necessária e significativa de ser. Ao
contrário, o egótico se delicia com seu modo-de-ser específico que ele imaginou
ser o seu. Pois, para ele, conhecer-se significa fundamentalmente, sobretudo
estabelecer uma manifestação efectiva de si e que seja capaz de iludi-lo cada
vez mais profundamente; e pela contemplação e veneração desta manifestação
procura uma aparência de conhecimento de seu próprio modo-de-ser, enquanto que
o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
A pessoa contempla-se
o seu si-mesmo, enquanto que o egótico ocupa-se com o seu “meu”: minha espécie,
minha raça, meu agir, meu génio.
O egótico não
só não participa como também não conquista actualidade alguma. Ele se contrapõe
ao outro e procura, pela experiência e pela utilização, apoderar-se do máximo
que lhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a tomada de posse;
ambas operações se passam no ISSO, no que não é actual. O sujeito, tal como ele
se reconhece, pode apoderar-se de tudo quanto queira, que daí ele não obterá
substância alguma, ele permanece como um ponto, funcional, o experimentador, o
utilizador, e nada mais. Todo o seu modo de ser múltiplo ou sua ambiciosa “individualidade”
não podem lhe proporcionar substância alguma.
Não
há duas espécies de homem; há, todavia, dois pólos do humano.
Homem algum é puramente pessoa, e
nenhum é puramente egótico; nenhum é inteiramente actual e nenhum totalmente
carente de actualidade. Cada um vive no seio de um duplo EU. Há homens
entretanto, cuja dimensão de pessoa é tão determinante que se podem chamar de
pessoas, e outros cuja dimensão de egotismo é tão preponderante que se pode
atribuir-lhes o nome de egótico. Entre aqueles e estes se desenrola a
verdadeira história.
Martin Buber, Eu-Tu, (1923), S. Paulo, Moraes, 1974, pp.75,79
Tradução do alemão de NEWTON AQUILES VON ZUBEN
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