Fotograma do filme "Aurora" F.W. Murnau, EUA, 1927
Porque
quanto mais o significado social de uma arte diminui, tanto mais se afastam, no
público, as atitudes, críticas e fruição. O convencional é apreciado
acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No
cinema, coincidem as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a
circunstância decisiva é que em nenhum outro lugar, como no cinema, a reação
maciça do público, constituída pela soma das reações de cada de um dos
indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À medida que
essas reações se manifestam, o público controla-as. A comparação com a pintura
continua a ser útil. A pintura sempre foi apresentada para ser vista por uma,
ou algumas pessoas. A observação simultânea de pinturas, por parte de um grande
público, como sucede no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura
que, não só através da fotografia, mas também de modo relativamente
independente dela, foi desencadeada pela pretensão da obra de arte, de
dirigir-se às massas.
A pintura
não está, pois, em condições de ser objeto de uma receção coletiva simultânea,
como sempre sucedeu com a arquitetura, outrora com a epopeia e atualmente com o
cinema. E, por pouco que esta circunstância, em si, nos permita tirar conclusões
sobre o papel social da pintura, é certo que isso institui uma séria limitação
num momento em que, devido a uma série de circunstâncias particulares, e de um
modo que até certo ponto contradiz a sua natureza, a pintura se vê diretamente
confrontada com as massas. Nas igrejas e mosteiros medievais e nas cortes da
nobreza, até finais do século XVIII, a receção coletiva da pintura não se terá
verificado simultaneamente, sendo transmitida de uma forma gradual e
hierárquica. Na mudança que entretanto se verificou, está contida a expressão
do conflito particular causado pelo envolvimento da pintura na
reprodutibilidade técnica da imagem. Mas, embora fosse exibida em público, em
galerias e salões, não houve meio que permitisse às massas organizar ou
controlar a sua receção. Assim, exatamente o mesmo público que reage com uma
atitude progressista a um filme grotesco, tem de reagir de forma reacionária
perante o surrealismo.(1) (...)
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De facto, o
cinema enriqueceu o nosso horizonte de perceção com métodos que podem ser
ilustrados pela teoria freudiana. Há cinquenta anos um lapso numa conversa passava,
mais ou menos, despercebido. Podia considerar-se uma exceção que tal lapso
abrisse perspetivas profundas, numa conversa que parecia decorrer
superficialmente. Desde “Psicopatologia da Vida Quotidiana”, esse facto
alterou-se. Esta obra isolou e, simultaneamente, tornou analisáveis coisas que,
anteriormente, fluíam na corrente do que era naturalmente percecionado. O cinema, em toda
a amplitude da perceção ótica, e agora também acústica, teve como consequência um
aprofundamento semelhante da perceção. (…)Uma das funções revolucionárias do
cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos
artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos
casos. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores
escondidos em aspetos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais
com uma direção genial objetiva, aumenta a compreensão das imposições que rege
nossa existência e consegue assegurar-nos um campo de ação imenso e
insuspeitado. As nossas tabernas, as ruas das grandes cidades, os nossos
escritórios e quartos mobilados, as nossas estações ferroviárias e as fábricas,
pareciam aprisionar-nos irremediavelmente. Chegou o cinema e fez explodir este
mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora
viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. Com o
grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas
dimensões. Uma ampliação não tem por única função tornar mais claro o que “sem
isso” teria permanecido confuso, o mais importante sendo a revelação de
estruturas de matéria inteiramente novas. Assim, também o ralenti não revela
apenas motivos conhecidos em movimento, antes descobrindo nestes movimentos
conhecidos outros, desconhecidos, “que longe de parecerem movimentos rápidos
retardados, atuam como peculiarmente deslizantes, aéreos e supraterrenos”.
Assim se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja
diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um
espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro preenchido
inconscientemente. Mesmo que seja comum observar, ainda que grosseiramente, o
andar das pessoas, nada se sabe da sua atitude na fração de segundo em que avançam
um passo. Em geral, o ato de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar,
mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efetuar esses gestos,
para não falar de como neles atua a nossa flutuação de humor. Aqui, a câmara
intervém com os seus meios auxiliares, os seus “mergulhos” e subidas, as suas
interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas
ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente ótico, tal como a
psicanálise ao inconsciente das pulsões.
1. Esta
perspectiva pode parecer tosca, mas como mostra o grande teórico Leonardo,
perspectivas toscas podem, sem dúvida, ser utilizadas ao serviço da sua época.
Leonardo compara a pintura com a música, usando as seguintes palavras: “A
pintura é superior à música porque não tem que morrer logo que lhe é dada vida,
como sucede com a pobre música… A música que se esvai logo que surge é inferior
à pintura que se tornou eterna com o uso do verniz.” (Leonardo de Vinci:
Frammenti letterarii e filosofici, citado por Fernand Baldensperger: Le
raffermissement des tecniques dans Ia littérature occidentale de 1840, in:
Revue de Littérature Comparée, XV/I, Paris 1935, pág. 79 – nota 1 -)
Walter Benjamin " A Obra de Arte na era da reprodutibilidade técnica"