terça-feira, abril 25, 2017


Lisboa, 25 de Abril de 1974

A democracia exige que todos participemos, para a melhorar, para entusiasmar também a classe dirigente ou expugná-la do seu reduto se esta for corrupta ou negligente. 

domingo, abril 16, 2017

Cinema: a arte alargada às massas




Fotograma do filme "Aurora" F.W. Murnau, EUA, 1927

Porque quanto mais o significado social de uma arte diminui, tanto mais se afastam, no público, as atitudes, críticas e fruição. O convencional é apreciado acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No cinema, coincidem as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a circunstância decisiva é que em nenhum outro lugar, como no cinema, a reação maciça do público, constituída pela soma das reações de cada de um dos indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À medida que essas reações se manifestam, o público controla-as. A comparação com a pintura continua a ser útil. A pintura sempre foi apresentada para ser vista por uma, ou algumas pessoas. A observação simultânea de pinturas, por parte de um grande público, como sucede no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura que, não só através da fotografia, mas também de modo relativamente independente dela, foi desencadeada pela pretensão da obra de arte, de dirigir-se às massas.

A pintura não está, pois, em condições de ser objeto de uma receção coletiva simultânea, como sempre sucedeu com a arquitetura, outrora com a epopeia e atualmente com o cinema. E, por pouco que esta circunstância, em si, nos permita tirar conclusões sobre o papel social da pintura, é certo que isso institui uma séria limitação num momento em que, devido a uma série de circunstâncias particulares, e de um modo que até certo ponto contradiz a sua natureza, a pintura se vê diretamente confrontada com as massas. Nas igrejas e mosteiros medievais e nas cortes da nobreza, até finais do século XVIII, a receção coletiva da pintura não se terá verificado simultaneamente, sendo transmitida de uma forma gradual e hierárquica. Na mudança que entretanto se verificou, está contida a expressão do conflito particular causado pelo envolvimento da pintura na reprodutibilidade técnica da imagem. Mas, embora fosse exibida em público, em galerias e salões, não houve meio que permitisse às massas organizar ou controlar a sua receção. Assim, exatamente o mesmo público que reage com uma atitude progressista a um filme grotesco, tem de reagir de forma reacionária perante o surrealismo.(1) (...)

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De facto, o cinema enriqueceu o nosso horizonte de perceção com métodos que podem ser ilustrados pela teoria freudiana. Há cinquenta anos um lapso numa conversa passava, mais ou menos, despercebido. Podia considerar-se uma exceção que tal lapso abrisse perspetivas profundas, numa conversa que parecia decorrer superficialmente. Desde “Psicopatologia da Vida Quotidiana”, esse facto alterou-se. Esta obra isolou e, simultaneamente, tornou analisáveis coisas que, anteriormente, fluíam na corrente do que era naturalmente percecionado. O cinema, em toda a amplitude da perceção ótica, e agora também acústica, teve como consequência um aprofundamento semelhante da perceção. (…)Uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores escondidos em aspetos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais com uma direção genial objetiva, aumenta a compreensão das imposições que rege nossa existência e consegue assegurar-nos um campo de ação imenso e insuspeitado. As nossas tabernas, as ruas das grandes cidades, os nossos escritórios e quartos mobilados, as nossas estações ferroviárias e as fábricas, pareciam aprisionar-nos irremediavelmente. Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. Com o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas dimensões. Uma ampliação não tem por única função tornar mais claro o que “sem isso” teria permanecido confuso, o mais importante sendo a revelação de estruturas de matéria inteiramente novas. Assim, também o ralenti não revela apenas motivos conhecidos em movimento, antes descobrindo nestes movimentos conhecidos outros, desconhecidos, “que longe de parecerem movimentos rápidos retardados, atuam como peculiarmente deslizantes, aéreos e supraterrenos”. Assim se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro preenchido inconscientemente. Mesmo que seja comum observar, ainda que grosseiramente, o andar das pessoas, nada se sabe da sua atitude na fração de segundo em que avançam um passo. Em geral, o ato de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efetuar esses gestos, para não falar de como neles atua a nossa flutuação de humor. Aqui, a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus “mergulhos” e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente ótico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.

1. Esta perspectiva pode parecer tosca, mas como mostra o grande teórico Leonardo, perspectivas toscas podem, sem dúvida, ser utilizadas ao serviço da sua época. Leonardo compara a pintura com a música, usando as seguintes palavras: “A pintura é superior à música porque não tem que morrer logo que lhe é dada vida, como sucede com a pobre música… A música que se esvai logo que surge é inferior à pintura que se tornou eterna com o uso do verniz.” (Leonardo de Vinci: Frammenti letterarii e filosofici, citado por Fernand Baldensperger: Le raffermissement des tecniques dans Ia littérature occidentale de 1840, in: Revue de Littérature Comparée, XV/I, Paris 1935, pág. 79 – nota 1 -)

Walter Benjamin " A Obra de Arte na era da  reprodutibilidade técnica"