domingo, maio 14, 2017

Mistificação e facto.



 Alex McLean


Lá fora ouvem-se foguetes e as buzinas não páram de tocar. Hoje treze de Maio parece-me que foi mesmo o dia do milagre, os Pastorinhos tiveram a sua confirmação de santidade, e a prova está à vista, ganhámos o festival eurovisão da canção depois de cinquenta anos sempre nos últimos lugares!  Enchem-se praças de futebol e fé,  estamos em plena exacerbação emocional nacionalista. Ninguém se moveria assim por um presidente ou um chefe de Estado, nosso, eleito. A política está sentada numa cadeira pequenina, no trono parece estar o futebol e a religião. Lembro-me de Marx, mas não ouso...ouso, sim, aqui vai Marx, para encontrar um equilíbrio entre a mistificação e a realidade dos factos.



"É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião; a religião não faz o homem. E a religião é, de facto, a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou ainda não se conquistou ou voltou a perder-se. Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantasmal da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é indiretamente a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o âmago de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.

A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que eles deixem as ilusões a respeito da sua situação é o apelo para abandonarem uma situação que precisa de ilusões . A crítica da religião é, pois, em germe a crítica do vale de lágrimas de que a religião é a auréola. A crítica colheu nas cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem fantasia ou sem consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que ele pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e recuperou o entendimento, a fim de que ele gire à volta de si mesmo e, assim, à volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira à volta do homem enquanto ele não gira à volta de si mesmo.

Por isso, a tarefa da história , depois que o além da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade do aquém. A imediata Tarefa da filosofia , que está ao serviço da história, é desmascarar a autoalienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma- se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política."



Se a luta política e a sociedade ideal revelou-se, quando experimentada, tirânica e profundamente injusta, a sociedade cristã católica nunca poderá ser testada na história porque abdicou há muito de ser histórica, é como uma esperança infinita, nunca desilude pois a sua forma não pode ser testada. Esta esperança infinita pode coexistir com a miséria dos factos e ser por eles alimentada num procedimento natural de fuga que por ser de algum modo maniqueísta é condescendente com a miséria dos factos. Alimenta-se essa esperança infinita de foclore e demagogia que se vai metamorfoseando para falar a linguagem do seu tempo. É certo que precisamos de foclore e demagogia para que as desigualdades e injustiças não sejam tão aquilo que verdadeiramente são, um filme de terror difícil de aguentar.


Karl Marx, Para a crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 
Tradução de Artur Mourão


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