Burt Glinn, Chicago 1968
As nossas paixões naturais estão muito bem delineadas; elas são
o instrumento da nossa liberdade, elas tendem a conservar-nos. Todas aquelas
paixões que nos subjugam e nos destroem vêm-nos de fora; não é a natureza que
as dá mas apropriamo-nos delas para seu prejuízo.
A fonte das nossas paixões, a origem e princípio de todas as
outras paixões, a única que nasce com o homem e que nunca o abandona enquanto
ele viver, é o amor-de-si: paixão
primitiva, inata, anterior a qualquer outra, e da qual todas as outras são, num
certo sentido, suas modificações. Neste sentido, todas são, se quisermos,
naturais. Mas a maior parte destas paixões tem causas estrangeiras sem as quais
nunca existiriam: e estas modificações longe de nos serem vantajosas, são-nos
prejudiciais; alteram o primeiro objeto e vão contra o seu princípio: é assim
que o homem se descobre fora da natureza, e inicia a contradição consigo mesmo.
O amor de si é sempre bom, e sempre
conforme com à ordem. Cada um estando encarregue especialmente da sua própria
conservação, tem e deve ter como primeiro e mais importante dos seus cuidados
vigiá-la constantemente: e como a poderia vigiar deste modo se não a tomasse
como o seu maior interesse?
Devemos portanto amar-nos para nos conservarmos, devemos
amar-nos mais que a qualquer outra coisa; e, na sucessão imediata do mesmo
sentimento, amamos o que nos conserva. A criança liga-se ao seu alimento:
Rómulo devia-se ligar à loba que o aleitou. No princípio essa ligação é
puramente maquinal. O que promove o bem-estar de um indivíduo atrai-o. O que
lhe causa dano causa-lhe repulsa. O que transforma esse instinto em sentimento,
a ligação em amor, a aversão em ódio, é a intenção manifestada de nos
alimentarem e de nos serem úteis. Não nos apaixonamos por seres insensíveis que
apenas seguem o impulso que lhes dão: mas aqueles do qual esperamos o bem ou
mal pela sua disposição interior, pela sua vontade, aqueles que vemos agir
livremente a favor ou contra, inspiram-nos sentimentos semelhantes aos que nos
demonstram. O que nos serve, procuramo-lo, mas o que nos quer servir, amamo-lo.
Fugimos do que nos causa dano: mas daquele que nos quer causar mal, odiamo-lo.
O primeiro sentimento de uma criança é de se amar a si
mesma; e o segundo que deriva do primeiro, é amar aqueles que dela se
aproximam; dado que no estado de fraqueza em que se encontra reconhece as
pessoas pelos cuidados que lhe proporcionam. (…)
Uma criança é naturalmente dada à bondade porque vê que
todos os que se aproximam são prestáveis, a partir dessa observação habitua-se
a ter um sentimento favorável aos da sua espécie; mas à medida que alarga as
suas relações, as suas necessidades, as suas dependências ativas ou passivas, o
sentimento das suas relações com os outros, desperta, e produz sentimentos de
dever e preferência. Então a criança torna-se dominadora, invejosa, falsa,
reivindicativa. Se a vergamos à obediência, não vendo nenhuma utilidade no que
lhe ordenamos, atribui ao capricho a intenção de a atormentar, e amotina-se. Mas se
lhe obedecemos, quando qualquer coisa lhe resiste, vê nesse gesto uma rebelião,
uma intenção de lhe resistir, bate na mesa ou na cadeira por lhe terem
desobedecido. O amor-de -si , que tem apenas a ver connosco, fica contente quando
as nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas; mas o amor-próprio, que se
compara, não está nunca contente e nunca estará, porque este sentimento de nos
preferirmos aos outros exige que os outros nos prefiram a si próprios; o que é
impossível. Vemos então como paixões doces e afetuosas nascem do amor-de-si,
e como as paixões odiosas e irascíveis nascem do amor-próprio.
Jean- Jacques Rousseau, Émile ou de L'Education,
Flammarion, Paris,1966, p. 275,276,277
Tradução Helena Serrão