John Locke (1632-1704)
Prezado Senhor:
Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância
entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal
principal e distintivo de uma verdadeira igreja. Porquanto, seja o que for que
certas pessoas alardeiem da antiguidade de lugares e de nomes, ou do esplendor
de seu ritual; outras, da reforma de sua doutrina, e todas da ortodoxia de sua
fé (pois toda a gente é ortodoxa para si mesma); tais alegações, e outras
semelhantes, revelam mais propriamente a luta de homens para alcançar o poder e
o domínio do que sinais da igreja de Cristo. Se um homem possui todas aquelas
coisas, mas se lhe faltar caridade, brandura e boa vontade para com todos os
homens, mesmo para com os que não forem cristãos, ele não corresponde ao que é
um cristão. "Os reis dos gentios exercem domínio sobre eles ", disse
nosso Salvador aos seus discípulos, "mas vós assim não sereis
"(Lucas, 22, 25). O papel da verdadeira religião consiste em algo
completamente diverso. Não se instituiu em vista da pompa exterior, nem a favor
do domínio eclesiástico e nem para se exercitar através da força, mas para
regular a vida dos homens segundo a virtude e a piedade. Quem quer que se
aliste sob a bandeira de Cristo deve, antes de tudo, combater seus próprios
vícios, seu próprio orgulho e luxúria; por outro lado, sem santidade da vida,
pureza de conduta, benignidade e brandura do espírito, será em vão que almejará
a denominação de cristão. "Tu, quando te converteres, revigora teus
irmãos"; disse nosso Senhor a Pedro (Lucas, 22, 32).
Quem for descuidado com sua própria salvação dificilmente
persuadirá o público de que está extremamente preocupado com a de outrem.
Ninguém pode sinceramente lutar com toda a sua força para tornar outras pessoas
cristãs, se não tiver realmente abraçado a religião cristã em seu próprio
coração. Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão
sem caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor. Assim sendo,
apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros
homens em nome da religião, se o fazem por amizade e bondade. E, então,
certamente, e unicamente então, acreditarei que o fazem, quando vir tais
fanáticos castigarem de modo semelhante seus amigos e familiares, que
claramente pecaram contra preceitos do Evangelho; quando os vir perseguir a
ferro e fogo membros de sua comunidade religiosa, que estão corrompidos pelos
vícios e se não se emendarem estão indubitavelmente condenados; e quando os vir
manifestar a ânsia e o amor de salvarem suas próprias almas mediante a inflição
de todos os tipos de tormentos e crueldades. Visto que é por caridade, como
pretendem, e zelo pelas almas humanas, que os despojam de sua propriedade,
mutilam seus corpos, os torturam em prisões infectas e afinal até os matam,
afim de convertê-los em crentes e obterem sua salvação; por que permitem que a
fornicação, a fraude, a malícia e outros vícios, os quais, segundo o Apóstolo
(Rom, 1), cheiram obviamente a paganismo, grassem desordenadamente entre sua
própria gente? Estas, e artimanhas semelhantes, são mais opostas à glória de
Deus, à pureza da Igreja e à salvação das almas, do que
qualquer dissidência consciente, por mais errônea que seja, das decisões
eclesiásticas, ou do afastamento do culto público, embora acompanhados de uma
existência pura. Por que, então, este zelo abrasador por Deus, pela Igreja e
pela salvação das almas - realmente abrasador, na fogueira - ignora, sem
qualquer castigo ou censura, tais fraquezas e vícios morais, reconhecidos por
todos como diametralmente opostos à confissão do cristianismo, e devota-se
inteiramente na aplicação de todas as suas energias para introduzir cerimónias,
ou para a correção das opiniões, as quais em grande parte dizem respeito a
temas sutis que transbordam a compreensão ordinária dos homens?
J. Locke, CARTA ACERCA DA
TOLERÂNCIA ,
Coleção “Os Pensadores” – Abril Cultural – pág. 03-6
Tradução de Anoar
Aiex