Foto de Robert Capa
A guerra, em que não queríamos acreditar, estalou e trouxe consigo a decepção.
Não só é mais sangrenta e mais mortífera do que todas as guerras passadas, por
causa do aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas, pelo menos, tão
cruel, exasperada e brutal como qualquer uma delas. Infringe todas as
restrições a que os povos se obrigaram em tempos de paz – o chamado Direito
Internacional – não reconhece nem os privilégios do ferido e do médico, nem a diferença
entre o núcleo combatente e o pacífico da população, e viola o direito de propriedade.
Derruba, com cega cólera, tudo o que lhe aparece pela frente, como se depois dela
já não houvesse de existir nenhum futuro e nenhuma paz entre os homens. Desfaz todos
os laços da solidariedade entre os povos combatentes e ameaça deixar atrás de
si uma exasperação que, durante longo tempo, impossibilitará o reatamento de
tais laços. Tornou também patente o fenómeno, dificilmente concebível, de que os
povos civilizados se conhecem e compreendem entre si tão pouco que podem
virar-se, cheios de ódio e de repulsa, uns contra os outros. Quando falo do
desapontamento, já todos sabem a que me refiro. Não é necessário ser um fanático
da compaixão; pode muito bem reconhecer-se a necessidade biológica e
psicológica do sofrimento para a economia da vida humana e, no entanto, condenar
a guerra nos seus meios e objectivos, suspirar pela sua cessação. Afirmou-se,
sem dúvida, que as guerras não poderão terminar enquanto os povos viverem em
tão diversas condições de existência, enquanto as valorações da vida individual
diferirem tanto entre uns e outros e os ódios, que os separam, representarem
forças instintivas anímicas tão poderosas. Estava-se, pois, preparado para que
a humanidade se visse ainda, por muito tempo, enredada em guerras entre os
povos primitivos e os civilizados, entre as raças humanas diferenciadas pela
cor da pele e, inclusive, entre os povos menos evoluídos ou incultos da Europa.
Mas das grandes nações da raça branca, dominadoras do mundo, às quais coube a
direcção da humanidade, que se sabia estarem ocupadas com os interesses
mundiais, e cujas criações são os progressos técnicos no domínio da natureza e
os valores culturais, artísticos e científicos; destes povos esperava-se que
saberiam resolver de outro modo as suas discórdias e os seus conflitos de
interesses. Dentro de cada uma dessas nações tinham-se prescrito ao indivíduo
elevadas normas morais, às quais devia ajustar a sua conduta, se pretendesse
participar na comunidade cultural. Estes preceitos, muitas vezes
rigorosíssimos, exigiam muito dele: uma ampla auto-limitação e uma acentuada
renúncia à satisfação das pulsões. Estava-lhe sobretudo proibido servir-se das
extraordinárias vantagens que o uso da mentira e do engano proporcionam na luta
com os outros homens. O Estado civilizado considerava estas normas morais como
o fundamento da sua existência, saía abertamente em sua defesa se alguém ousava
infringi-las e, inclusive, declarava como impraticável a sua sujeição ao exame
do entendimento crítico. Era, pois, de supor que ele próprio quisesse
respeitá-las e que não pensasse empreender contra elas algo que constituísse
uma negação dos fundamentos da sua própria existência. Por último, pôde
observar-se como dentro das nações civilizadas se encontravam inseridos certos
restos de povos que eram em geral incómodos e que, por isso, só com relutância
e com limitações eram admitidos a participar na obra comum da cultura, para a
qual se tinham revelado suficientemente aptos. Mas era de crer que os grandes
povos tivessem alcançado uma tão grande compreensão dos seus elementos comuns e
tanta tolerância em face das suas diferenças que não confundissem num só, como
na antiguidade clássica, os conceitos de “estrangeiro” e de “inimigo”. Confiando
neste acordo dos povos civilizados, inumeráveis homens trocaram a sua
residência na pátria pelo domicílio no estrangeiro e associaram a sua
existência às relações comerciais entre os povos amigos. Mas aquele a quem a
necessidade de vida não encadeava constantemente ao mesmo lugar podia formar
para si, com todas as vantagens e todos os atractivos dos países civilizados, uma
nova pátria maior em que ele se comprazia sem obstáculo e sem suspeitas.
Saboreava assim o mar azul e cinzento, a beleza das montanhas nevadas e dos
verdes prados, o encanto dos bosques do Norte e a magnificência da vegetação meridional,
a atmosfera das paisagens sobre as quais pairam grandes recordações históricas,
e a serenidade da natureza intacta. Esta nova pátria era também para ele um
museu repleto de todos os tesouros que os artistas da humanidade civilizada
tinham, há muitos séculos, criado e legado. Ao deambular neste museu de sala em
sala, pude comprovar imparcialmente quão diversos eram os tipos de perfeição
que, entre os outros compatriotas seus, tinham sido criados pela mistura de
sangues, pela história e pela peculiaridade da mãe Terra.(...)
Sigmund Freud, Escritos sobre
a guerra e a Morte, p7 e 8,Lusosofia, Covilhã.
Tradução Artur Morão
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