Foto Eve Arnold
Supõe que trabalhas numa biblioteca, verificando os livros
que as pessoas requisitam, e um amigo te pede para o deixares roubar uma obra
de referência difícil de encontrar que quer possuir.Podes hesitar em concordar por diversas razões. Podes recear
que ele seja apanhado e que, assim, tanto ele como tu arranjem problemas. Ou
podes querer que o livro fique na biblioteca para que tu próprio possas
consultá-lo.
Mas também podes pensar que aquilo que ele propõe está
errado – que ele não deve fazê-lo e que tu não deves ajudá-lo. Se pensas assim,
o que quer isso dizer, o que torna isso verdadeiro, se é que há algo que o
torne verdadeiro?
Dizer que isso está errado não é dizer apenas que vai contra
as regras. Pode haver más regras que proíbam aquilo que não está errado — tal
como uma lei contra criticar o governo. Uma regra também pode ser má por exigir
algo que é errado — tal como uma lei que exige a segregação racial em hotéis e restaurantes. As ideias de certo e errado são diferentes das
ideias daquilo que vai ou não contra as regras. Caso contrário, não podiam ser
usadas na avaliação das regras, bem como na avaliação das ações.Se pensas que seria errado ajudares o teu amigo a roubar o
livro, então sentes-te desconfortável com a ideia de o fazeres: de algum modo,
não queres fazê-lo, mesmo que também estejas relutante em recusares ajudar um
amigo. Donde vem o desejo de não o fazer? Qual é o seu motivo, a razão por
detrás dele?
Há várias maneiras pelas quais algo pode estar errado, mas
neste caso, se tivesses de explicá-lo, provavelmente, dirias que seria injusto
[unfair no original] para os restantes utentes da biblioteca, que podem estar
tão interessados no livro como o teu amigo, mas que o consultam na sala das
obras de referência, onde qualquer pessoa que precise dele pode encontrá-lo.
Podes também sentir que deixar o teu amigo levar o livro trairia aqueles que te
empregam, que te pagam precisamente para prevenir que coisas como estas
aconteçam.
Estas ideias relacionam-se com os efeitos sobre outras
pessoas — não necessariamente com efeitos sobre os seus sentimentos, uma vez
que podem nunca vir a descobri-lo, mas, ainda assim, com algum tipo de dano. Em
geral, a ideia de que algo é errado depende do seu impacto não só na pessoa que
o pratica, mas também noutras pessoas. Se o descobrissem, não gostariam e
opor-se-iam. Mas supõe que tentas explicar tudo isto ao teu amigo e ele
diz: «Eu sei que o bibliotecário não havia de gostar se viesse a dar pela falta
do livro e que, provavelmente, alguns dos restantes utentes da biblioteca
ficariam aborrecidos se descobrissem que o livro tinha desaparecido, mas que
mal faz? Eu quero o livro; por que razão hei-de preocupar-me com os outros?»
Espera-se que o argumento de que tal seria errado lhe dê uma
razão qualquer para não o fazer. Mas que razão poderá ter alguém que, pura e
simplesmente, não se preocupa com as outras pessoas e que pode escapar
impunemente para se coibir de fazer qualquer coisa que, normalmente, é
considerada errada? Que razão pode ter para não matar, roubar, mentir ou magoar
outras pessoas? Se conseguir aquilo que quer ao fazer essas coisas, por que
razão não há-de fazê-las? E, se não há nenhuma razão para não as fazer, em que
sentido será isso errado'?
É claro que a maioria das pessoas se preocupam em certa
medida umas com as outras. Mas, se alguém não se preocupa, a maior parte de nós
não conclui que a moral não se aplica a essa pessoa. A moral não deixa de se
aplicar automaticamente a uma pessoa que mata alguém apenas para lhe roubar a
carteira, sem se preocupar com a vítima. O facto de ela não se preocupar não
torna a sua atitude correta: devia preocupar-se. Mas por que razão deveria ela
preocupar-se? Tem havido muitas
tentativas para responder a esta questão. Um tipo de resposta consiste em
tentar encontrar algo com que a pessoa já se preocupe para depois identificar a
moral com isso.
Thomas Nagel, Que quer
dizer tudo isto? 1987, 1995, Gradiva, p56,57
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