sábado, março 03, 2018

Se duvido e, tenho de duvidar, então suspendo o meu juízo, não semeio opiniões quando desconheço a qualidade da semente




FOTOGRAFIA DE EVE ARNOLD (1912/2012) Festival Rock, 1968

Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou acreditar que o céu, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. Vou considerar-me a mim próprio como não tendo mãos, não tendo olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, mas crendo falsamente possuir tudo isto. Obstinadamente vou permanecer agarrado a este pensamento e, se por este meio não está no meu poder conhecer algo verdadeiro, pelo menos está em meu poder que me guarde com firmeza  de dar assentimento ao falso, bem como ao que aquele ser enganador, por mais poderoso, por mais astuto, me possa impor. Mas isto é uma empresa laboriosa e uma certa preguiça reconduz-me ao modo habitual de viver. Como um cativo que frui em sonhos de uma liberdade imaginária, quando mais tarde começa a desconfiar que dormia, teme que o acordem e(…)espontaneamente nas opiniões antigas e receio acordar. Temo que a vigília laboriosa que sucede à placidez do sono não seja consumida, depois, no meio de uma certa luz, mas entre as trevas inextrincáveis das dificuldades já discutidas. (…) Por conseguinte, suponho que é falso tudo o que vejo. Creio que nunca existiu nada daquilo que a memória enganadora representa. Não tenho, absolutamente, sentidos; o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são quimeras. Então, o que será verdadeiro? Provavelmente uma só coisa: que nada é certo.

René Descartes (1641), Meditações sobre a Filosofia Primeira. Trad. Gustavo de Fraga. Coimbra: Almedina, 1992, pp. 113-118

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