Não devemos, pois, admirar-nos que uma utilização imediata
tão impura projete sombra sobre o empirismo claro e deforme o nosso perfil
epistemológico. Basta manejar um instrumento mal afiado para que se constate
esta deformação psicológica. Basta uma raiz a interromper o ritmo da enxada
para que se apague a alegria do jardineiro, para que o trabalhador, esquecendo
a clara racionalidade da sua tarefa, anime o instrumento de uma energia
vingadora. Seria interessante circunscrever bem este conceito de energia
triunfante; ver-se-ia que ele dá a determinados pensamentos uma segurança, uma
certeza, um sabor, que enganam acerca da sua verdade. O perfil epistemológico
da noção de energia em Nietzsche, por exemplo, bastaria talvez para explicar o
seu irracionalismo. Com uma noção falsa pode fazer-se uma grande doutrina. (…)
Um conhecimento particular pode expor-se numa
filosofia particular; mas não pode fundar-se
numa filosofia única; o seu progresso implica aspetos filosóficos
variados. (…)
Em resumo, a qualquer atitude filosófica geral, pode
opor-se, como objeção, uma noção particular cujo perfil epistemológico revela
um pluralismo filosófico. Uma só filosofia é, pois, insuficiente para dar conta
de um conhecimento preciso. Se então se quiser fazer, a diferentes espíritos,
exatamente a mesma pergunta a propósito de um mesmo conhecimento, ver-se-á
aumentar singularmente o pluralismo filosófico da noção. Se ao interrogar-se
sinceramente acerca de uma noção tão precisa como a noção de “massa” um
filósofo descobre em si cinco filosofias, quantas se obterão se interrogarem
vários filósofos a propósito de várias noções! Mas todo este caos pode
ordenar-se se considerarmos que uma só filosofia não pode explicar tudo e se
quisermos dar uma ordem às filosofias. Por outras palavras, cada filosofia
fornece apenas uma banda do espectro nocional, e é necessário agrupar todas as
filosofias para termos o espectro nocional completo de um conhecimento
particular. Naturalmente, nem todas as noções têm, em relação à filosofia, o
mesmo poder dispersivo. É raro que uma noção tenha um espectro completo.
Existem ciências em que o racionalismo quase não existe. Existem outras em que
o realismo está quase eliminado. Para formar as suas convicções, o filósofo tem
muitas vezes o hábito de procurar apoios numa ciência particular, ou no
pensamento pré-científico do senso comum. Ele pensa então que uma noção é o
substituto de uma coisa, em vez de pensar que uma noção é sempre um momento da
evolução de um pensamento. Só será, pois, possível descrever a vida filosófica
das noções estudando as noções filosóficas implicadas na evolução do pensamento
científico. As condições tanto experimentais como matemáticas do conhecimento
científico alteram-se com tanta rapidez que os problemas se colocam
diferentemente para o filósofo de dia para dia. Para acompanhar o pensamento
científico, é necessário reformar os quadros racionais e aceitar as novas
realidades.
Gaston Bachelard, A Filosofia do Não, Abril S.A Cultural, S.
Paulo, p.28,29,30
A questão do racionalismo e do empirismo deveria ser estudada de acordo com este princípio, ele dá-nos a dimensão do jogo de reflexos dos conceitos e como eles não correspondem ao mesmo objeto apesar de serem nomes idênticos.
1 comentário:
"Basta uma raiz a interromper o ritmo da enxada para que se apague a alegria do jardineiro[...]". Não creio que um obstáculo provável "apague a alegria do jardineiro", ele sabe os "ossos" do seu ofício. A "alegria do jardineiro" é trabalhar para tornar belo aquele pedaço de terra. O Jardineiro não é um capinador, e se fosse, ainda mais teria como provável tal obstáculo.
Analisemos as visões dos sábios sobre determinado assunto.
Enviar um comentário