sábado, junho 09, 2018

Plurais filosofias, plurais objetos.






Não devemos, pois, admirar-nos que uma utilização imediata tão impura projete sombra sobre o empirismo claro e deforme o nosso perfil epistemológico. Basta manejar um instrumento mal afiado para que se constate esta deformação psicológica. Basta uma raiz a interromper o ritmo da enxada para que se apague a alegria do jardineiro, para que o trabalhador, esquecendo a clara racionalidade da sua tarefa, anime o instrumento de uma energia vingadora. Seria interessante circunscrever bem este conceito de energia triunfante; ver-se-ia que ele dá a determinados pensamentos uma segurança, uma certeza, um sabor, que enganam acerca da sua verdade. O perfil epistemológico da noção de energia em Nietzsche, por exemplo, bastaria talvez para explicar o seu irracionalismo. Com uma noção falsa pode fazer-se uma grande doutrina. (…)

Um conhecimento particular pode expor-se numa filosofia particular; mas não pode fundar-se

numa filosofia única; o seu progresso implica aspetos filosóficos variados. (…)

Em resumo, a qualquer atitude filosófica geral, pode opor-se, como objeção, uma noção particular cujo perfil epistemológico revela um pluralismo filosófico. Uma só filosofia é, pois, insuficiente para dar conta de um conhecimento preciso. Se então se quiser fazer, a diferentes espíritos, exatamente a mesma pergunta a propósito de um mesmo conhecimento, ver-se-á aumentar singularmente o pluralismo filosófico da noção. Se ao interrogar-se sinceramente acerca de uma noção tão precisa como a noção de “massa” um filósofo descobre em si cinco filosofias, quantas se obterão se interrogarem vários filósofos a propósito de várias noções! Mas todo este caos pode ordenar-se se considerarmos que uma só filosofia não pode explicar tudo e se quisermos dar uma ordem às filosofias. Por outras palavras, cada filosofia fornece apenas uma banda do espectro nocional, e é necessário agrupar todas as filosofias para termos o espectro nocional completo de um conhecimento particular. Naturalmente, nem todas as noções têm, em relação à filosofia, o mesmo poder dispersivo. É raro que uma noção tenha um espectro completo. Existem ciências em que o racionalismo quase não existe. Existem outras em que o realismo está quase eliminado. Para formar as suas convicções, o filósofo tem muitas vezes o hábito de procurar apoios numa ciência particular, ou no pensamento pré-científico do senso comum. Ele pensa então que uma noção é o substituto de uma coisa, em vez de pensar que uma noção é sempre um momento da evolução de um pensamento. Só será, pois, possível descrever a vida filosófica das noções estudando as noções filosóficas implicadas na evolução do pensamento científico. As condições tanto experimentais como matemáticas do conhecimento científico alteram-se com tanta rapidez que os problemas se colocam diferentemente para o filósofo de dia para dia. Para acompanhar o pensamento científico, é necessário reformar os quadros racionais e aceitar as novas realidades.


Gaston Bachelard, A Filosofia do Não, Abril S.A Cultural, S. Paulo, p.28,29,30

A questão do racionalismo e do empirismo deveria ser estudada de acordo com este princípio, ele dá-nos a dimensão do jogo de reflexos dos conceitos e como eles não correspondem ao mesmo objeto apesar de serem nomes idênticos.

1 comentário:

Um peregrino disse...

"Basta uma raiz a interromper o ritmo da enxada para que se apague a alegria do jardineiro[...]". Não creio que um obstáculo provável "apague a alegria do jardineiro", ele sabe os "ossos" do seu ofício. A "alegria do jardineiro" é trabalhar para tornar belo aquele pedaço de terra. O Jardineiro não é um capinador, e se fosse, ainda mais teria como provável tal obstáculo.

Analisemos as visões dos sábios sobre determinado assunto.