O que acontece no nosso século é coisa digna de fixar a atenção; a filosofia constitui, mesmo para as pessoas de maior capacidade, uma ciência quimérica e vã, que carece de aplicação e valor, tanto na teoria como na prática. Entendo que a causa de tal desdém são os ergotistas ( os que têm por hábito argumentar por silogismos) que se postaram nas suas avenidas e as disfarçaram e adulteraram. É grande erro apresentar como inacessíveis às crianças as verdades da filosofia, considerando-as com dureza e severidade terríveis; quem ousou disfarçá-las com aparências tão distantes da verdade, com rosto tão austero e tão odioso? pelo contrário, nada há mais alegre divertido, jovial, e até, ouso dizer, galhofeiro. A filosofia só apregoa festa e tempo aprazível; uma face triste e transida expressa a ausência de filosofia.
(...) A alma que alberga a filosofia deve, para a cabal saúde daquela, ter a matéria sã; a filosofia tem de mostrar mesmo exteriormente o repouso e o bem estar; deve formar à sua semelhança, o porte externo e procurar, por conseguinte, uma dignidade agradável, um aspecto activo e alegre e um semblante contente e benigno. O testemunho mais seguro da sabedoria é um gozo interior constante; o seu estado, como o das coisas superlunares, jamais deixa de ser a serenidade e a calma. (...) A filosofia, cuja missão é serenar as tempestades da alma, ensinar a resistir às febres e à fome com fisionomia serena, sem se valer de princípios imaginários, mas de razões naturais e palpáveis, tem a virtude por objectivo, a qual está, como assegura a escola, colocada no cume de um monte escarpado e inacessível; os que a viram de perto, consideram-na pelo contrário, situada no alto de uma formosa planície, fértil e florescente, sob a qual contempla todas as coisas.
Montaigne, Ensaios, Ed Amigos dos livros, Lx,p.126,127
Foto de Nana Sousa Dias
segunda-feira, agosto 26, 2019
Sobre a natureza alegre da filosofia
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