Courbet, estúdio do artista, 1854
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Platão, O Mito dos três Géneros
Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de
agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os géneros da humanidade,
não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um
terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa;
andrógino era então um género distinto, tanto na forma como no nome comum aos
dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto
em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo,
os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das
mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça
sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois
sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu
andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse;
mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e
virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus
oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que
eram três os géneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início
era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua,
pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios
como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de
uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas
voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles
que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra
os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se
devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após
fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e
os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que
continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que
tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a
intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei
a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis
para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre
duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de
novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles
andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como
os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo;
a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço
para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse
mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo
torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se
chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e
ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. (…) Por
conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por
sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se
um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral,
por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades
e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se
encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher —
quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus
consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então
eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra,
como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele
se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que
no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo
gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem,
que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar
ao trabalho e ocupar-se do resto da vida.(…) Por conseguinte, todos os homens
que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de
mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas
as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm.
Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito a sua atenção
aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm
deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto
são crianças, (…)gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e
a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de
natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas
estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia,
coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova
disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a
política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que
eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção,
embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com
o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do
amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se
encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem
como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de
amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um
do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela
vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha
da parte de um ao outro. A ninguém com efeito pareceria que se trata de união
sexual, e que é
porventura em vista disso que um gosta da companhia do
outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de
cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e
o indica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse
Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens,
ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse:
Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para
o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro?Platão, O Banquete,
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