Fotograma de " O Ajo Azul" Filme de Joseph Von Sternberg, 1930
"Não temos os ouvidos cheios dos perigosos rumores dos factos?", diz o cético, no seu amor pela quietude, como um policial que deve zelar pela segurança pública, "Este não subterrâneo é terrível. Silêncio. Pelo menos uma vez, animais subterrâneos!" Aqui é que o cético, este ser delicado, amedronta-se facilmente, a sua consciência está pronta a sobressaltar –se a cada não e mesmo a um sim decidido, e experimenta uma espécie de ofensa. Sim e não! — mas isto a seu ver vai contra a moral — contrariamente, gosta de festejar a sua virtude com uma nobre abstenção, por exemplo dizendo com Montaigne: "Que sei eu?" ou, com Sócrates "Sei que não sei nada", ou ainda: "Desconfiei de mim mesmo, nenhuma porta se me abriu aqui" e, "supondo que fosse aberta, porquê entrar depressa?" Ou ainda: "Para que servem as hipóteses apressadas?" Abster-se de todas as hipóteses poderia ser prova de bom gosto. "É necessário endireitar aquilo que é curvo? Ou tapar um buraco com uma estopa qualquer? Não há tempo para isso? E o tempo não tem tempo? Mas sois endiabrados que não quereis ESPERAR? Mesmo o incerto tem seus atrativos, a Esfinge é uma Circe, e Circe também era filósofo." Estes são os consolos do cético e é necessário conceder que deles necessita. O ceticismo é a expressão mais espiritual para um estado fisiológico complicado, que vulgarmente se chama debilidade nervosa e morbidez, e que se manifesta todas as vezes em que raças ou classes longamente divididas entre si se entrecruzam de modo decidido e repentino. Na nova geração que herdou, por assim dizer, diferentes medidas e valores, tudo é inquietude, turbamento, dúvida, tentativa, as melhores forças agem inibidoramente, as próprias virtudes não permitem, reciprocamente, o crescimento e fortalecimento de cada uma delas, falta equilíbrio à alma e ao corpo, força gravitacional e segurança perpendicular. Mas aquele que nasceu de tais raças cruzadas é, antes de mais nada adoentado e degenerado em termos de vontade, ignora a independência que há na resolução, a sensação valorosa, a satisfação do querer, duvidam do "livre arbítrio", até nos seus sonhos. A nossa Europa é, nos nossos dias,teatro de uma tentativa insensatamente repentina de mistura radical de classes e consequentemente de raças e portanto cética, daquele ceticismo móvel que salta impaciente de ramo em ramo, outras vezes sombrio como uma nuvem prenhe de pontos de interrogação e frequentemente mortalmente saciado do próprio querer! Paralisia da vontade — onde não se encontra, na atualidade, esse ser raquítico?! E quantas vezes com que fausto não é visto! E que fausto sedutor! Esta moléstia endossa as mais suntuosas vestes da mentira, e assim, por exemplo, tudo aquilo que é pomposamente tratado, na atualidade, sob o nome de “objetividade”, de “filosofia científica” de “l'art pour l'art”, de “conhecimento puro e independente da vontade”, nada mais é que ceticismo, paralisação da vontade pomposamente apresentada -, asseguro-me o diagnóstico dessa moléstia europeia. A vontade doente difundiu-se de modo desigual na Europa, manifesta-se com mais força e sob os aspetos mais variados onde a cultura se aclimatou há mais tempo e tende a limitar-se na medida em que o "bárbaro" tende a manter — ou a reivindicar — os seus direitos sobre os negligentes vestuários da civilização ocidental.
Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, São Paulo HEMUS LIVRARIA, pág 128