segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Obstáculos epistemológicos

 


A ciência, tanto pela sua necessidade de prestígio como por princípio, opõe-se absolutamente à opinião. Se, em determinada questão, ela legitimar a opinião, é por motivos diversos daqueles que dão origem à opinião; de modo que a opinião está, por direito, sempre errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objetos pela utilidade, ela impede-se de os conhecer. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído. O conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar. A pergunta abstrata e franca desgasta-se: a resposta concreta fica. A partir daí, a atividade espiritual inverte-se e bloqueia. Um obstáculo epistemológico incrusta-se no conhecimento não questionado. Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa. Bergson diz justamente: "O nosso espírito tem a tendência irresistível de considerar como mais clara a ideia que costuma utilizar com frequência". A ideia ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. Com o uso, as ideias valorizam-se indevidamente. Um valor em si opõe-se à circulação dos valores. É fator de inércia para o espírito. Às vezes, uma ideia dominante polariza todo o espírito. Um epistemólogo irreverente dizia, há vinte anos, que os grandes homens são úteis à ciência na primeira metade de sua vida e nocivos na outra metade. Não surpreende que o instinto formativo seja persistente em alguns pensadores. Mas, o instinto formativo acaba por ceder ao instinto conservador. Chega o momento em que o espírito prefere o que confirma o seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas. O instinto conservador passa então a dominar, e cessa o crescimento espiritual.

 Gaston Bachelard, A formação do espírito científico, RJ, Contraponto, 1996, pg.18,19

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