quinta-feira, dezembro 23, 2021

O copo vazio

 


Vieira da Silva, Composição, 1952


Pedi muito; recebi muito.

Pedi muito; recebi pouco, recebi

quase nada.

E entretanto? Alguns guarda-chuvas abertos dentro de casa.

Um par de sapatos que ficaram por engano na mesa da cozinha.

 

Ah, longe disso – a minha natureza era essa. Eu tinha

Um coração de pedra, era distante. Era

Egoísta, rígida até à tirania.

 

Mas sempre fui essa pessoa, mesmo nos primórdios da infância.

Pequena, morena, receada pelas outras crianças.

Nunca mudei. No interior do corpo, a maré

abstracta da sorte passou

de alta a baixa da noite para o dia.

 

Teria sido o mar? A sua reacção, porventura,

A uma força celestial? Por via das dúvidas,

Eu ia rezando. Tentava ser uma pessoa melhor.

Depressa me pareceu que o terror inicial,

Amadurecido num narcisismo moral,

Talvez se tivesse transformado enfim

Num crescimento humano efectivo. Talvez

os meus amigos se referissem a isso, ao darem-me a mão,

dizendo-me que compreendiam

os maus tratos, as porras inacreditáveis que eu aturei,

subentendendo (fui dessa opinião em tempos) que eu não batia bem

por dar tanto por tão pouco.

Isso quando no fundo queriam dizer que eu era boa (apertando-me a mão  com força)-

Boa amiga e boa pessoa, e não uma criatura com páthos.

 

Eu não era patética! Era algo em grande,

Como uma rainha ou uma santa.

 

Enfim, tudo isto dá azo a interessantes conjecturas,

E vem-me ao espírito que o decisivo é acreditar

no esforço, acreditar que algum bem advirá do simples facto de se tentar,

um bem totalmente isento de mácula desse corrupto e iniciador impulso

de convencer ou seduzir –

 

O que seremos nós sem isso?

Num turbilhão no meio do negro universo,

Sozinhos, medrosos, incapazes de influenciar o destino –

 

de que dispomos nós, afinal?

De truques deploráveis, feitos com escadotes e sapatos,

Feitos com sal, de tentativas recorrentes, impuras

Na sua motivação, de formar carácter.

De que dispomos nós para aplacar as forças portentosas?

 

E julgo que no final terá sido essa a questão

Que destruiu Agamémnon, parado na praia,

Com os navios gregos a postos, o mar

Invisível além do porto sereno, o futuro

Letal, instável: foi parvo ao achar

que seria possível controlá-lo. Deveria ter dito

não disponho de nada, eis-me à tua mercê.


 Louise Gluck, O copo vazio

Tradução de Vasco Gato in Lacrau, Língua Morta, Lx, 2021, p.p 79,80,81