O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe -se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes da sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as composições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem, para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a virtude toma -se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um divertimento.
O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, submete-o necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um género misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero a vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria receção que os vossas supostas descobertas encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda a vossa filosofia, sede sempre um homem.
David Hume, Ensaio sobre o entendimento, Secção
Tradução: Anoar Aiex
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópole, edição eletrónica.
Cultivar a Filosofia como se cultiva uma planta, não a afastando da luz mas não a expondo ao Sol forte; ter cuidado na sua rega, nutri-la de água mas não a afogar com demasiada água. Assim, com a Filosofia, o mesmo, analogamente, cultivá-la, desenvolvê-la mas com composições fáceis e entroncadas em problemas vitais e próximos dos alunos. Aqui, abre-se uma questão: quais serão, para os alunos de filosofia do secundário, os "problemas vitais e próximos"? Problemas que possam ser discutidos fora da esfera particular de cada um e que possam interessar enquanto problemas universais? No 10º Ano alguns problemas éticos se colocados de uma forma um pouco escandalosa , suscitam aceso debate. Lembro-me de uma aula no ano passado, em que, com a minha turma de Humanidades, discutimos a excisão, colocando os alunos com papeis distintos face ao problema. Não é o problema que os afeta, pois todos eles o consideram um problema de gente distante que nada tem a ver com eles, mas o jogo de pensarem de uma certa maneira, de se colocarem na pele de outra pessoa e de poderem pensar que estão em risco e que dependem do seu discurso para se salvarem ou para ultrapassarem esse risco. É o lado do jogo, da brincadeira ou "faz de conta" que os entusiasma para a discussão e a invenção de novos pontos de vista racionais. O " "Faz de conta", o jogo, a diversão dá-nos uma elasticidade mental que, posso julgar, como cerne da civilidade e este tipo de jogo em que se discute co razões e se é obrigado a ouvir e a expor é a essência da filosofia e a verdadeira aprendizagem do ser filósofo.
Talvez os alunos do secundário sejam demasiado imaturos para pensar seriamente os problemas filosóficos, ou talvez que pensar seriamente não seja desejável como meta, Hume alerta-nos para as posições radicais, pois o pensamento radical pode não interessar ao filósofo na medida em que o afasta, o submerge, o torna incompreensível para os demais; neste sentido, estou nesta linha de pensamento, havemos de ser filósofos enquanto saibamos cultivar o interesse pelas questões científicas e culturais e pelo jogo da conversação racional. A filosofia pode ser um instrumento poderoso para desenvolver essa razoabilidade nos alunos afastando-os de um certo fundamentalismo nas sua opiniões.
Helena Serrão