quarta-feira, setembro 18, 2024

O ensino das humanidades e das artes é crucial para o desenvolvimento da relação com os outros.


 Ruth Orkin

“Os cidadãos não se relacionam devidamente com o mundo complexo que os rodeia apenas mediante o conhecimento factual e a lógica. A terceira competência do cidadão, estreitamente relacionada com as primeiras duas, consiste naquilo a que podemos chamar “imaginação narrativa”. Isto significa a capacidade de pensar como será estar na situação de outras pessoas diferentes de mim, de ser um leitor inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções e os desejos e anseios de alguém que está noutra situação.

O desenvolvimento da compaixão foi parte fundamental do melhor das ideias modernas acerca da educação democrática, quer nas nações ocidentais quer nas não ocidentais.

Grande parte desse desenvolvimento deu-se na família, mas as escolas, e mesmo as instituições do ensino superior, desempenharam um papel significativo. Para o desempenharem perfeitamente, devem dar, no currículo, lugar de destaque às humanidades e às artes, cultivando um tipo de educação participativa que ative e refine a capacidade de ver o mundo através dos olhos de outra pessoa.

As crianças, como já dissemos, nasceram com uma capacidade rudimentar para a compaixão e preocupação com os outros. As suas primeiras experiências, todavia, são usualmente dominadas por um poderoso narcisismo, enquanto a ansiedade relacionada com a alimentação e o bem-estar continua desligada de qualquer perceção segura da realidade dos outros. Aprender a ver outro ser humano não como uma coisa, mas como uma pessoa integral, não é um acontecimento automático, mas uma conquista que requer a superação de muitos obstáculos, sendo o primeiro a absoluta incapacidade de distinguir entre mim e os outros. Bastante cedo na habitual experiência do bebé, esta distinção começa de forma gradual a tornar-se evidente, à medida que os bebés percebem pela coordenação de sensações tácteis e visuais o facto de algumas das coisas que veem serem parte dos seus próprios corpos e outras não. Mas uma criança pode percecionar que os seus pais não são parte dela própria, sem ter por isso noção de que possuem um mundo interior de pensamento e sentimento, e sem reconhecer que este mundo interior faz exigências à própria conduta da criança. É fácil para o narcisismo assumir o controlo nesta fase, considerando os outros meros instrumentos dos desejos e sentimentos da criança.

A capacidade para a preocupação genuína com os outros tem várias precondições. Uma, sublinhada por Rousseau, prende-se com o grau de competência prática: uma criança que saiba como fazer as coisas sozinha não precisa de tornar os outros seus escravos, a maturação física geralmente liberta as crianças da total dependência narcísica dos outros.

Uma segunda precondição, que destaquei quando falei na repugnância e na vergonha, consiste no reconhecimento de que o controlo total não é possível nem benéfico, que o mundo é um lugar em que todos temos fraquezas e necessidade de encontrar maneiras de nos apoiarmos uns aos outros. Este reconhecimento envolve a capacidade de ver o mundo como um lugar onde não estamos sozinhos - um lugar onde as outras pessoas têm as suas próprias vidas e necessidades e direitos que lhes permitem procurar satisfazer essas necessidades.

Mas a minha segunda precondição represente uma conquista complexa. Como chegaria alguém a ver o mundo desta forma, após tê-lo visto como um lugar em que os outros vultos circulam cuidando das suas próprias necessidades?

Parte da resposta a esta questão está sem dúvida na nossa estrutura inata. A interação natural de sorrisos entre bebé e pais revela uma disposição para reconhecer a humanidade nos outros, e depressa os bebés se deleitam nesses reconhecimentos. Outra parte da resposta,

contudo, reside no jogo, que fornece uma terceira precondição indispensável para a preocupação: a capacidade de imaginar o que poderá ser a experiência de outra pessoa.

(…) Como é que os adultos mantêm e desenvolvem a sua aptidão para o jogo depois de deixarem para trás o mundo das brincadeiras infantis? Winnicott defendeu que o papel-chave é desempenhado pelas artes. A firmava que a primeira função das artes em todas as culturas humanas é a de preservar e reforçar a cultura do “espaço de jogo” e considerou o papel das artes na vida humana o de, acima de tudo, alimentar e ampliar a capacidade para a empatia. Na resposta sofisticada a uma obra de arte complexa, via o prolongamento do prazer do bebé nos jogos e no role-playing.

Martha C. Nussbaum, Sem fins lucrativos, Lx, Edições 70, 2019, p.144 a 152