sexta-feira, novembro 14, 2025

"Hábitos de Burel"

 


A. Abbas, Modelo francesa Inês de La Fressange, no apartamento de Coco Chanel. Paris, 1986


A esta pergunta, os idealistas como Kant respondem.

Que respondem eles?

Respondem: pouca coisa.

O idealismo é a doutrina segundo a qual só podemos conhecer o que é apreendido pela nossa consciência, essa entidade semidivina que nos salva da bestialidade. Conhecemos do mundo o que a nossa consciência dele pode dizer por ser o que ela apreende – e nada mais.

Peguemos no exemplo ao acaso de um simpático gato chamado Leão. Porquê? Porque acho que é mais fácil com um gato. E pergunto-lhes: como podem ter a certeza de que se trata de um gato ou mesmo saber o que é um gato? Uma resposta saudável seria referir o facto da vossa perceção do animal, completada com alguns mecanismos conceptuais e linguísticos, os levar a formar tal conhecimento. Mas a resposta idealista consiste em falar na impossibilidade que há de sabermos que aquilo que vemos e concebemos do gato, se o que a nossa consciência apreende como gato, está de acordo com o que o gato é na sua interioridade profunda. Se calhar, o meu gato, que agora vejo como um quadrúpede obeso, de bigode fremente e que arrumo numa gaveta do meu espírito com o rótulo “gato”, é na verdade e na sua própria essência, uma bola de grude verde que não faz miau. Mas os meus sentidos estão de tal forma acomodados, que não é isso que eu vejo, e o monte imundo de cola verde, iludindo a minha repulsa e a minha cândida confiança, é apreendido pela minha consciência como um animal doméstico glutão e sedoso.

É assim o idealismo Kantiano. Do mundo, só conhecemos a ideia que dele forma a nossa consciência. Mas há uma teoria mais deprimente do que esta, uma teoria que abre perspectivas ainda mais terríveis do que a de estarmos a acariciar, sem darmos conta, um naco de barba verde ou, todas as manhãs, estarmos a enfiar numa caverna purulenta as torradas que julgávamos destinadas à torradeira.

Existe o idealismo de Edmund Husserl, que passou a evocar para mim uma marca de hábitos de burel para padres seduzidos por um obscuro sisma da igreja Batista.

Muriel Barbery, A elegância do ouriço, 2006, Lx 2008, Presença, pag.53 e 54


Escrito por uma estudante de Filosofia, amargamente frustrada pela fenomenologia que nunca percebeu, que apelida, não sem sentido de humor, de fraude; este romance vinga-nos das nossas próprias frustações com o discurso hermético da Filosofia e, ouso dizer sem medo de invocar as parcas intelectuais do grande voo da águia sobre o comum, que alguma Filosofia é mesmo num solilóquio autista do autor com as grandes metásteses da abstração, ao ponto de não ter sentido, ou do seu sentido não ter qualquer eco na nossa própria procura de saber e esclarecimento. Lê-se assim como se fosse um espelho do que muitas vezes pensamos mas não dizemos acerca da Filosofia.

"Hábitos de burel" é o título do capítuo  -Refere-se ao traje de frade ou freira feito de burel, um tecido grosseiro e resistente de lã. O termo também pode ser usado de forma figurada para significar luto ou, numa perspetiva mais ampla, uma vida ascética.  Hábito religioso: "Burel" descreve a veste usada por monges e freiras, geralmente de cor escura e feita com este tecido específico. Luto: O significado figurado de "burel" é o luto, ou seja, a tristeza e o pesar causados pela morte de alguém.E vamos à segunda questão: que conhecemos nós do mundo?