quarta-feira, junho 25, 2008

Técnicas de normalização

Alfred Eisenstaedt, Um grupo de criança a ver um teatro de fantoches, Paris 1963

(...) É esta substituição do individuo juridicamente responsável por um elemento correlativo de uma técnica de normalização, é esta transformação que a peritagem psiquiátrica, entre outros procedimentos, veio a constituir.

É isto, este aparecimento, esta emergência das técnicas de normalização, com os poderes que lhe estão ligados, que queria tentar estudar colocando como princípio, como ponto de partida (mas voltarei a ela mais aprofundadamente na próxima vez) que estas técnicas de normalização, e os podereres de normalização que a ela estão ligados, não são apenas o resultado do encontro, da composição ou ramificação de um sobre o outro do saber médico e do poder judicial, mas que de facto, através de toda a sociedade moderna, é um certo tipo de poder -nem médico, nem judicial, mas outro - que acabou por colonizar e recalcar o poder médico e judicial.; um tipo de poder que finalmente debuta sobre a cena teatral do tribunal , retirando o seu apoio, claro, da instituição judicial e da instituição médica, mas que,nele mesmo, tem a sua autonomia e as suas regras. Esta emergência do poder de normalização, o modo como ele é formado, a maneira como se veio a instalar, sem que se tenha apoiado numa só instituição, mas no jogo que conseguiu estabelecer entre instituições diferentes, estendeu a sua soberania/supremacia na nossa sociedade - é isto que quero estudar - Então começaremos da próxima vez.


Michel Foucault 1ª lição no Collège de France em 1974


in Les anormaux, Cours au Collège de France, Gallimard, 1999, Paris, pag


Tradução de Helena Serrão

domingo, junho 22, 2008

Afecções



Teorema 37



O desejo que nasce da tristeza ou da alegria, do ódio ou do amor, é tanto maior quanto maior é a afecção originária.


Demonstracão: A tristeza diminui, ou entrava a potência de agir do homem, quer dizer, diminui ou entrava a força pela qual o homem se esforça para se preservar no seu ser; e, consequentemente é contrária a este esforço; e tudo aquilo que o homem afectado de tristeza se esforça por fazer é afastar-se dela. Ora quanto maior é a tristeza mais necessário é opor-lhe uma parte consideravel da potência de agir do homem. Logo, quanto maior a tristeza, maior a potência de agir que o homem necessita para repelir essa tristeza; quer dizer tanto maior será o desejo - dito de outro modo apetite - de repudiar a tristeza. Seguidamente, como a alegria aumenta e favorece a potência de agir do homem, demonstraremos facilmente pela mesma via, que o homem afectado pela alegria não deseja outra coisa senão conservá-la, com um desejo tão forte quão forte foi a alegria. Enfim, visto que o ódio e o amor são eles próprios afecções de alegria e tristeza, resulta do mesmo modo que o esforço ou apetite - dito de outro modo desejo - que nasce do ódio e do amor é tanto maior quanto maior forem o ódio e o amor eles mesmos.



Espinosa, Éthique, Flammarion, Paris, s.d



Tradução do Francês de Helena Serrão

quinta-feira, junho 05, 2008

As disciplinas e a disciplina.




(...) As disciplinas tornaram-se no decorrer do sec.XVII e do sec. XVIII as fórmulas gerais da dominação. Diferentes da escravatura pois não se fundam sobre uma relação de apropriação do corpo; é próprio da elegância das disciplinas dispensarem estas relações custosas e violentas obtendo efeitos de utilidade igualmente importantes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, massiva, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do mestre, do seu capricho. Diferentes da vassalagem que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que tem menos efeitos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas do rituais de pertença. Diferentes ainda do ascetismo e das "disciplinas" de tipo monástico, que têm como função assegurar renúncias mais que melhorias na utilidade e que, se implicam a obediência a outro, têm como fim principal aumentar o domínio de cada um sobre o seu corpo.


O momento histórico das disciplinas, é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não visa apenas o conhecimento das suas habilidades, nem tão pouco o aligeiramento da sua sujeição, mas a formação de uma relação que dentro do mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e vice-versa. Forma-se então uma política de coerções que são trabalho sobre o corpo, manipulação calculada dos seus elementos, dos seus gestos dos seus comportamentos. O corpo humano entra dentro de uma maquinaria de poder que o esventra, desarticula e recompõe.

Uma "anatomia política", que é também uma "mecânica de poder", está em vias de nascer.




Michel Foucault, Surveiller et Punir, Gallimard, 1975, pag.162

Tradução de Helena Serrão
N. Harou-Romain, Tortura da Inquisição, 1700,Hospital, 1697

terça-feira, junho 03, 2008

Arte e Progresso Moral

Miguel Barceló, Veneza, Mallorca, 1957

(...) É antes de mais, necessário deixar de considerar (a arte) um meio para o prazer e considerá-la uma das condições da vida humana. Vista deste modo, é impossível deixar de reparar que a arte é um dos meios das pessoas se relacionarem.


Toda a arte faz aquele que a aprecia entrar num certo tipo de relação, quer com aquele que a produziu ou está produzindo, quer com todos aqueles que simultânea, prévia ou posteriormente, recebem a mesma impressão artística.

Tal como as palavras, que ao transmitir pensamentos e experiências das pessoas, servem como um meio de união entre elas, também a arte actua de forma semelhante. A particularidade desta última forma de relacionamento, e que a distingue do tipo de relacionamento por meio de palavras, consiste nisto: enquanto por meio de palavras uma pessoa transmite a outra os seus pensamentos, pela arte transmite as suas emoções.
(...)
A arte é uma actividade humana que consiste nisto: em uma pessoa conscientemente, por intermédio de certos sinais externos, levar a outras pessoas a sentimentos de que teve experiência e que estas sejam contagiadas por tais sentimentos e deles também tenham experiência.
A arte não é, como os metafísicos dizem, a manifestação de alguma ideia misteriosa de belo ou de Deus ; não é, como os psicólogos estéticos dizem, um jogo que serve para descarregar o excesso de energia acumulada; não é apenas a expressão das emoções de uma pessoa através de sinais externos; não é a produção de objectos que agradem; e acima de tudo, não é prazer; mas é um meio de união entre pessoas, unindo-as nos mesmo sentimentos, indispensável à vida e ao progresso em direcção ao bem-estar dos indivíduos e da humanidade.
Leão Tolstoi, O que é a arte?
Tradução de Aires de Almeida