domingo, outubro 26, 2008

Descartes e o problema do conhecimento, parte 6 - Afastar o cepticismo apelando à existência de um ser perfeito


A defesa do realismo indirecto contra a acusação de que apenas ele nos ameaça com o cepticismo deixa em aberto a questão principal que é, lembremos, a de saber se há um modo de responder ao cepticismo e de justificar a crença de que há realmente um mundo físico externo, para além das nossas experiências. Descartes respondeu ao cepticismo apelando à ideia de Deus, uma ideia que podemos encontrar no interior da nossa mente, tenha esta última algum contacto com uma realidade física externa ou não. Descartes adoptou a perspectiva de que a existência de Deus pode ser provada através dos argumentos teístas tradicionais. Provar que Deus existe é provar que um ser totalmente bom existe e que esse ser, embora possa permitir que cometamos erros de quando em vez (para podermos aprender com eles), não permitiria que vivêssemos em geral enganados, pois isso seria contrário à sua bondade. Daí se segue que Deus não permitiria que estivéssemos sempre a sonhar, a ser enganados por um espírito malévolo ou outra coisa do género. Logo, se os nossos sentidos nos levam a acreditar na realidade de um mundo externo, num mundo físico, esse mundo terá de existir.
(…) é claro que seria mais satisfatório filosoficamente se conseguíssemos responder ao cepticismo sem ter de apelar à existência de Deus, porque isso nos faria evitar pelo menos um assunto que pode ser tão controverso como o cepticismo e o realismo indirecto. Na perspectiva de muitos filósofos, podemos fazê-lo argumentando que a crença comum de que há objectos externos que correspondem às nossas experiências perceptivas é um género de hipótese quase científica que encerra a melhor explicação dessas experiências; uma explanação que é constantemente confirmada por predições com êxito que fazemos nessa base. Como [Michael] Lockwood argumentou, este tipo de defesa imita exactamente a justificação dos cientistas para hipóteses acerca de entidades não observáveis como os electrões. Se a nossa crença na existência dos electrões pode ser racionalmente justificada em virtude dela ser assumida por uma teoria científica bem confirmada, então também a nossa crença em objectos físicos externos pode sê-lo, não obstante estes não serem directamente observáveis.
Um princípio bem conhecido da explicação científica é a Navalha de Ockham, que defende que as hipóteses mais simples e económicas são preferíveis às desnecessariamente mais complexas, porque aquelas levantam menos mistérios subsequentes e, assim, permitem que nos mantenhamos o mais perto possível da evidência de que dispomos. (…) Uma resposta à sugestão de Lockwood é que ela viola a Navalha de Ockham, pois um céptico poderia argumentar que a hipótese do ‘espírito malévolo’ é mais simples e económica do que a perspectiva comum e que é, por isso, preferível. Na verdade, ao contrário da visão comum, que assume um enorme número e variedade de objectos físicos externos governados por leis complicadas, a hipótese do demónio postula a existência de um único objecto, o próprio demónio, operando de acordo com o princípio simples de querer enganar.
No entanto, como argumentou o físico David Deutsch, as hipóteses cépticas, como os cenários do cérebro na cuba e do espírito malévolo, são na verdade mais complicadas do que a crença comum num mundo físico externo, pois são parasitas desta. Para formar a hipótese de um espírito malévolo enganador, temos primeiro de formar a hipótese comum da existência do mundo de objectos físicos externos governados por leis físicas e depois imaginar que o demónio nos faz acreditar que esta hipótese é verdadeira. Isso requer que o demónio seja suficientemente complexo para desempenhar esta tarefa com êxito, o que significa que é suficientemente complexo para interagir connosco, imitando exactamente aquilo que seria um mundo realmente composto por objectos físicos externos. Mas isso significa que o espírito malévolo teria de ser ele próprio pelo menos tão complexo como um mundo de objectos físicos externos; com efeito, significa que esse espírito teria de ser mais complexo, pois teria não apenas de imitar esse género de mundo, como também de se aperceber conscientemente de que estaria a fazer tudo isto (consciência que um mundo de objectos físicos externos não teria). Assim, seria uma coisa pensante, o que levantaria mais questões: acerca dos motivos subjacentes ao que faz, etc.; questões que a perspectiva comum não levantaria. Portanto, afinal de contas, a hipótese do espírito malévolo não é realmente tão simples ou económica quanto a hipótese do senso comum e a Navalha de Ockham deve levar-nos a rejeitar a primeira em favor da última das hipóteses. 

Edward Feser, Philosophy of mind. A beginner’s guide. (Oxford, 2006). Trad. Carlos Marques.

8 comentários:

MassaMansa disse...

O melhor truque que Descartes fez foi convencer toda a gente que pensava.

MassaMansa disse...

"Penso, logo existo" é uma das máximas filosóficas mais célebres de todos os tempos. Mas também deviam ensinar que Descartes só se levantava a partir das 11 horas (ao contrário dos alunos que muitas vezes têm de ir gramar com ele às 8H15), costume que manteve quase até ao fim em 1650. Quando a rainha Cristina da Suécia o persuadiu a mudar-se para Estocolmo, onde passou a acordar às 5 horas da manhã. apanhou uma pneumonia e morreu. Para ser correcta a sua máxima deveria ser: "Penso, logo existo mas só a partir das onze horas, senão deixo de pensar e morro".

Vic Edward disse...

Adoro esta dimensão do saber. Pois esta pressupõe: tolerância, lucidez, utilidade,etc...Todas as ideias são úteis, ainda que umas mais que outras, essa disputa deve estar longe das intenções do "discípulo" da Filosofia.E sorver somente o "suco" do saber.

Anónimo disse...

massamansa és uma pessoa com um intelecto bastante superior e é por ser tão bom que percebes quanto os alunos sofrem nas aulas.

Helena Serrão disse...

Caros comentadores,
É de facto sabido que Descartes gostava de ficar na cama até tarde. Mas isso não se aplica com toda a probabilidade aos anos em que ele foi estudante em La Fléche. Por outro lado, é tb. sabido que o que ele fazia na cama durante as manhãs era trabalhar nos seus pensamentos e escritos!!! Se os caros comentadores deixarem o legado de Descartes na filosofia e na ciência (mesmo que o vosso trabalho seja feito no conforto do leito) a humanidade agradecer-vos-á.
Gostava ainda de vos desafiar a discutir os problemas filosóficos apresentados nestes textos sobre Descartes. Façam um esforço nesse sentido, façam perguntas se quiserem, leiam os textos com atenção e pensem sobre eles (mesmo que o façam deitados nas vossas camas!). Os editores terão todo o prazer em pensar convosco.
Carlos Marques

Anónimo disse...

"é tb. sabido que o que ele fazia na cama durante as manhãs era trabalhar nos seus pensamentos e escritos!!!"

Agradecia que me informassem como é que sabem isto!

MassaMansa disse...

"Que conforto podem dar os vórtices de Descartes a um homem que tem remoinhos nos intestinos?"

Benjamim Franklin

Helena Serrão disse...

Cara Palmira Bastos
Qualquer biografia de Descartes lhe dirá que Descartes tinha o hábito de trabalhar na cama. Recomendo-lhe uma que foi publicada em português o ano passado ou já este ano (não posso precisar).
A. C. Grayling, Descartes (não me recordo da editora). Facilmente a encontrará se tiver interesse.
Carlos Marques