A questão da arte é a questão ‘o que é a arte?’ Esta questão tem sido importante tanto na estética como na prática artística do século XX. Em certas ocasiões, parece que os artistas tiveram de se confrontar com ela para que o seu trabalho fosse levado a sério pelo mundo da arte. No momento em que escrevo, o artista belga Francis Alys resolveu enviar um pavão vivo à Bienal de Veneza em vez de comparecer ele mesmo. A actividade do pavão é apresentada como uma obra de arte intitulada O Embaixador. Os agentes britânicos do artista forneceram um comentário esclarecedor sobre o significado desta obra de arte:
A ave pavonear-se-á em todas as exposições e festas como se fosse o artista em pessoa. É anedótico, insinuando a vaidade do mundo da arte no espírito das velhas fábulas de animais.
Presume-se que alguém estaria à mão para limpar as obras menores que este substituto de artista foi espalhando durante a Bienal. Talvez estas venham a ser exibidas numa futura Bienal.
Alys não é de modo nenhum o primeiro artista a apresentar um animal vivo como uma obra de arte. Por exemplo, Uma Obra de Arte Autêntica de Mark Wallinger (ver p. ) é um cavalo de corrida que já competira. Não se pretende que o nome seja entendido como metáfora. É literalmente uma obra de arte. É um autêntico cavalo de corrida, bem como uma autêntica obra de arte. Pôr um título ao cavalo e publicitar a sua existência desafia a maioria das perspectivas aceites acerca do que é a arte. E esse é, num certo sentido, o objectivo – ou, pelo menos, boa parte dele. Na criação de obras de arte como estas – um género apelidado ‘objectos ansiosos’ pelo crítico de arte Harold Rosenberg – os artistas aproximam-se da condição de filósofos. Vêem os seus predecessores como proponentes de uma teoria da arte que refutam claramente com um contra-exemplo bem escolhido. Com o tempo, tais contra-exemplos são eles próprios absorvidos no mainstream, ao perderem a sua capacidade de chocar. Tornar-se-ão por fim naquilo que uma nova vanguarda porá em causa. Deste modo evolui a arte em direcções estranhas e imprevisíveis.
O mais famoso destes gestos disruptivos – central na maioria das discussões sobre a questão da arte – é a Fonte de Marcel Duchamp. Trata-se de um urinol de porcelana com o pseudónimo ‘R. Mutt’ nele pintado grosseiramente, enviado em 1917 à exposição da Sociedade para a Defesa dos Artistas Independentes em Nova Iorque. A exposição era supostamente aberta – os participantes tinham de pagar seis dólares, podendo assim exibir dois trabalhos. Duchamp pagou a inscrição, mas o seu trabalho foi, não obstante, rejeitado. O presidente da mesa declarou à imprensa que a Fonte de Duchamp não era ‘segundo nenhuma definição, uma obra de arte’. A fotografia da Fonte de Alfred Stieglitz apareceu no segundo número de uma revista, O Cego, juntamente com uma discussão ‘do caso Richard Mutt’, que incluía a seguinte justificação (em resposta à acusação de que a obra era ‘uma simples peça de canalização’ e não arte):
Não é importante se foi ou não o Sr. Mutt que fez a fonte com as suas próprias mãos. Ele ESCOLHEU-a. Pegou num objecto vulgar do quotidiano, colocou-o de modo a que o seu significado utilitário desaparecesse sob o novo título e ponto de vista - criou um novo pensamento sobre esse objecto.
Portanto, tratava-se de uma obra de arte segundo uma certa definição. Com a Fonte e outros ‘readymades’ (literalmente, ‘prontos a usar’) – um termo técnico inventado por Duchamp –, Duchamp abalava a confiança sobre o que a arte podia e devia ser. Quer a Fonte tenha começado por ser uma brincadeira ou não, aquilo que Duchamp visava com ela veio a tornar-se um assunto sério com o passar do tempo. A ideia de que todas as obras de arte têm de ser o produto da mão do artista, de que têm de ser belas esteticamente ou profundas emocionalmente, é dificilmente sustentável quando obras como a Fonte são aceites como parte do mainstream, como de facto veio a acontecer.
Como sugeri, objectos ansiosos como O Embaixador, Uma Obra de Arte Autêntica e a Fonte, fornecem uma espécie de filosofia visual que se debruça sobre e responde à questão da arte. Porém, é um erro pensar que podem substituir a filosofia adequadamente. A maioria deles são meras afirmações jocosas. Há coisas que a filosofia pode dizer acerca desta questão que não podem ser ditas através de uma obra de arte visual. Este livro, sendo um trabalho de filosofia, não deverá provavelmente acabar por ser exposto numa galeria de arte. A filosofia é um exercício crítico com ideias e palavras. Envolve argumentação e contra-argumentação, exemplo e contra-exemplo. Os filósofos não se limitam a expressar as suas crenças, justificam-nas com evidência e argumentos. Raciocinam, definem, clarificam. Acima de tudo, estão interessados na verdade, tentando incessantemente ir para além das aparências. Tentam expor a sua posição com clareza e rigor de modo a poderem ser postos em causa e porventura criticados. A filosofia, portanto, não tem a ver com manifestos e gestos, mas com convicções apoiadas em argumentação que leva a certas conclusões. Apesar disso, a filosofia pode ser apaixonada e vibrante. Não tem de ser um mero dissecar de argumentos..
A questão da arte parece acomodar-se melhor a uma resposta filosófica do que artística. Isto não significa, no entanto, que a filosofia possa fornecer uma resposta simples. Com efeito, um dos resultados de se estudar filosofia é o de se tomar consciência de que a maioria das questões aparentemente simples não têm resposta simples. A filosofia pode fornecer um suporte teórico para as crenças que nos são mais queridas, mas pode igualmente mostrar-nos quão pouco sabemos. O oráculo de Delfos considerou Sócrates o mais sábio dos atenienses, apanhando de surpresa o filósofo, que sentia nada saber ao certo. Mas ao questionar aqueles que julgavam saber do que falavam, Sócrates acabou por perceber que o oráculo tinha razão. A sua sabedoria consistia em conhecer os limites do seu conhecimento, ao passo que os outros sustentavam dogmaticamente opiniões indefensáveis. Com este livro, o meu principal objectivo é pôr a nu uma série de posições indefensáveis, evidenciando os contra-argumentos e contra-exemplos que as debilitam.
Tendo em conta que é difícil dizer algo de positivo e de verdadeiro acerca da arte, podemos ter a tentação de pôr completamente de parte a questão da arte. Para quê darmo-nos sequer ao trabalho de filosofar acerca de obras de arte? Barnett Newman sugeriu que os artistas precisam tanto de teoria da arte como as aves de ornitologia. Mas há aqui uma questão autêntica, uma questão que merece ser investigada, precisamente porque é tão intrigante. E ela torna-se tanto mais intrigante quanto mais artistas põem em causa a noção do que é a arte. A questão é posta mais obviamente pelos objectos ansiosos. Mas uma vez reconhecida a questão, ela é de igual modo difícil quando se consideram exemplos de arte mainstream. Vale certamente a pena devotar alguma energia à tentativa de lhe responder ou pelo menos mostrar por que razão não é possível dar-lhe uma resposta.
Nigel Warburton, The Art Question (London, 2003). Trad. Carlos Marques.
3 comentários:
Se toda essa conversa acerca de Sócrates, do pensar por si, do pensamento crítico, etc., é para levar a sério, porque é que a maioria dos blogs e sites de filosofia quase nunca têm um único texto escrito pelos próprios autores? Porque é que é só citações? Fica-se com a impressão que alguns professores de filosofia falam muito de pensar mas não pensam, falam muito de autonomia e não são autónomos, falam muito de espírito crítico e nunca criticam - nomeadamente as suas próprias atitudes.
Caro anónimo,
O logosfera agradece-lhe o comentário. Espero que o seu pouco apreço pelos 'professores de filosofia' não se estenda à filosofia ela própria. Creio que não, pois parece ser uma pessoa interessada na disciplina (sendo que procura informação sobre ela), ainda que desgostosa com aqueles que a leccionam (pelo menos, aqueles que conhece). Lembre-se, contudo, que há muitos professores de filosofia que são filósofos. Na verdade, muitos dos textos publicados são de filósofos que são também professores!
Quanto ao facto de o logosfera não publicar (por norma) textos originais dos editores, deve-se sobretudo ao facto de o blogue ter fins essencialmente escolares. Mas isso pode mudar.
Não me parece justo que se diga que se publicam meramente 'citações'. Muitos dos textos exibem um problema filosófico e argumentos a favor de uma determinada perspectiva sobre esse problema. Isso quer dizer que o que é importante não é quem escreve, mas o que está escrito.
Dou-lhe, por isso, se me permite, um conselho: procure ler os textos e pensar sobre o que eles dizem e não se importe muito com quem os escreveu (seja o Platão, o Kant ou um dos editores). Em filosofia o que importa é a qualidade da argumentação usada para esclarecer um problema e não tanto (a autoridade de) quem a produziu.
"Mesmo no mais alto trono do Mundo estamos sempre sentados sobre o nosso rabo"
Montaigne
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