sábado, novembro 01, 2008

Autoridade das (e respeito pelas) autoridades.

Penso, por razões que apresentarei mais abaixo, que é errado pensar que uma postura de deferência pela 'autoridade' é necessariamente desprezível, humilhante ou indigna. Em muitos casos, respeitar e seguir a opinião de uma autoridade é, pelo contrário, um sinal de inteligência. Antes de tratar deste aspecto, queria chamar a atenção para um erro muitas vezes cometido por pessoas que, como eu, defendem esta tese.
Ao tentar justificar-se a ideia de que a deferência pela autoridade nem é sempre negativa, invoca-se frequentemente o facto de não podermos, na prática, viver sem argumentos de autoridade (argumentos que afirmam a verdade de uma conclusão só com base na palavra de alguém). É sem dúvida uma verdade incontornável que a imensidão e complexidade do mundo que nos rodeia (bem como a finitude das nossas existências e aptidões) fazem com que, pessoalmente, tenhamos dele um conhecimento muito escasso. Portanto, se não confiássemos na palavra de outras pessoas ficaríamos paralisados em grande parte das nossas iniciativas. Como iniciar um procedimento legal, como ultrapassar uma doença, como construir uma casa, como atravessar um rio, como reparar uma avaria mecânica do automóvel... sem confiar que outros o sabem fazer por mim? A necessidade prática de recorrer à palavra de outros sem estar em condições de a avaliar por nós mesmos é o que justifica que a todo o momento recorramos de facto à palavra de outros. Quem nunca confiou na palavra de um médico? Quem nunca se meteu num barco ou avião, acreditando que aqueles que estão aos comandos sabem o que estão a fazer? É claro que todos nós reconhecemos que sem autoridades ficaríamos muitas vezes (quase sempre?) sem saber o que fazer.
É preciso, no entanto, perceber que não é a necessidade de autoridades que justifica a autoridade dessas autoridades. O facto de não podermos viver sem argumentos de autoridade não garante, por si só, de modo nenhum, que estes sejam fiáveis. O facto de precisarmos de um parecer jurídico não garante que haja pareceres jurídicos nos quais possamos confiar, não percebendo nós mesmos nada de leis. A respeitabilidade lógica de um argumento (de autoridade ou outro) não decorre da circunstância empírica de termos dele necessidade para fins práticos. Para que um argumento tenha peso lógico tem de ser pelo menos razoável aceitar a sua conclusão e isso só pode decorrer da verdade das suas premissas e de se saber se essas mesmas premissas implicam de alguma maneira a conclusão.
Com isto não se quer dizer que a deferência pela autoridade seja sempre injustificada. O que se quer dizer é que a racionalidade ou bondade de um argumento (incluindo argumentos de autoridade) tem de provir de razões que não as nossas necessidades práticas, psicológicas, ou outras necessidades de facto.
A questão é, então, a seguinte: se o nosso desejo de tomar decisões não é suficiente para justificar a confiança na palavra de outrém, o que há que possa justificar essa confiança, sendo que não podemos, por nós mesmos, garantir a sua racionalidade? Não estamos condenados a ser uma Maria-vai-com-as-outras em grande parte das nossas decisões? Não desesperemos. Se estiverem presentes certos requisitos há boas razões para aceitar uma opinião, mesmo se a nossa ignorância pessoal não nos permite determinar se as premissas que lhe estão subjacentes são verdadeiras ou não. Sucintamente, um argumento de autoridade tem autoridade (é racionalmente aceitável) quando:
(i) a opinião em causa for a opinião de alguém que possui credenciais que nos levem a crer que se trata de alguém entendido na matéria em questão. Por exemplo, se procuramos aprender matemática, uma licenciatura em Matemática, por exemplo, confere alguma autoridade na matéria à pessoa que a possui. Uma licenciatura acompanhada de um doutoramento melhor ainda; um doutoramento, muitos anos de prática lectiva, a ascensão a cargos importantes numa universidade prestigiada, a autoria de artigos científicos em publicações prestigiadas, etc. são indícios que nos tranquilizam ainda mais. Por outro lado, se ouvirmos dizer "Compre relógios Omega, pois os relógios Omega são os preferidos das estrelas de Hollywood.", não temos boas razões para aceitar a conlusão veiculada, pois ser estrela de Hollywood não confere competência relojoeira.
(ii) as conclusões veiculadas por um entendido na matéria em questão são consensuais entre os entendidos. Por exemplo, se um matemático apresentou uma demonstração de uma certa proposição matemática e a grande maioria dos matemáticos aceitam essa demonstração como boa, temos aí uma boa razão para aceitar o que é dito, mesmo que não saibamos, por assim dizer, juntar dois mais dois. Além disso, esse consenso dá-me razão para crer que se eu próprio percebesse o suficiente de matemática estaria de acordo com aqueles que percebem.
(iii) não há indícios fiáveis, para além das opiniões dos especialistas, que contrariem o que os especialistas dizem. Por exemplo, se uma comissão de especialistas afirma que a construção de um aeroporto é essencial ao país e que o local de construção dessa estrutura é, de entre um conjunto de alternativas, preferencialmente o local x, temos boas razões para aceitá-lo, apesar de não sermos especialistas, desde que não haja nada, para além do que é dito pela comissão, que nos force a desconfiar da correcção da escolha. Por exemplo, se o impacte ambiental for claramente intolerável ou muito grande, sendo o dos locais alternativos mínimo; ou se verificar que os especialistas da comissão estão a ser claramente manipulados ou de algum modo condicionados pelos políticos que têm interesse em construir o aeroporto num certo local, etc.
É óbvio que um argumento de autoridade nunca nos pode conduzir a certezas, mas é óbvio também que nos pode conduzir a uma conclusão que é com muita probabilidade verdadeira. A racionalidade inclui também os argumentos cuja conclusão se segue muito provavelmente das premissas (argumentos com validade não dedutiva) e não apenas aqueles cuja conclusão se segue obrigatoriamente delas (argumentos dedutivos). Em suma, há argumentos de autoridade (os que cumprem os requisitos enunciados acima) que estão perfeitamente dentro da esfera da racionalidade. Ora, quem pode dizer que seguir a razão é um sinal de pouca inteligência? As reticências (ideológicas) da moda em relação à palavra autoridade não nos devem deixar de ver o que está à vista.
Carlos Marques

11 comentários:

Rolando Almeida disse...

Caro Carlos,
Muito útil este texto.
Obrigado

Helena Serrão disse...

Caro Rolando,
Agradeço a simpatia e, sobretudo, por me fazer chegar à sua página. Fico muito feliz por verificar que há ainda, no nosso ensino secundário, professores de filosofia que sabem do seu ofício. Vá dando notícias.
Abraço.
Carlos Marques

MassaMansa disse...

"...pouco a pouco, às apalpadelas e olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: és tu o teu próprio negreiro."

Wilhelm Reich

Helena Serrão disse...

Caro Rolando,
Estava a ser rude. Obrigado também pela menção elogosa que fez ao logosfera na sua página. Até logo.
Carlos Marques

Anónimo disse...

Para que serve um texto útil? É útil em quê? O meu pai era sapateiro e arranjava sapatos. Era útil. É disso que fala o Rolando? É dessa utilidade? Então de que utilidade fala?
Um blog é para troca de «afagos» públicos ou para discutir assuntos com interesse?

Helena Serrão disse...

Caro Anónimo
Força. Discuta ideias. O que pensa, por exemplo, do que é dito no texto?

Anónimo disse...

Quando alguém diz que o texto é útil estamos a discutir ideias e quando eu pergunto o que significa um texto útil já não estamos? O que penso do texto? Penso o seguinte: podemos dizer que ele é útil? O que significa um texto útil? Não estou a discutir uma ideia? Na verdade estou a questionar o que o rolando disse e que mereceu da Vossa parte o comentário de que ele «sabe do seu ofício».

Rolando Almeida disse...

Caro Anónimo,
É útil porque sou professor de filosofia e posso usar o texto dos colegas nas minhas aulas, com os meus alunos para discutir os problemas.
Além de tudo este blog tem imensas traduções úteis principalmente para os colegas e leitores que não dominam a língua inglesa. Este esforço de traduzir e divulgar é muitas das vezes, muito mais útil do que ter meia dúzia de filósofos no activo.
Aos autores só tenho a fazer um enorme agradecimento.

Helena Serrão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Helena Serrão disse...

Caro Rolando
A sua explicação antecipou aquela que eu tinha em mente. Disse tudo o que havia para dizer.
Cabe-me esclarecer o nosso co-comentador que afirmou não entender porque é que eu disse que o Rolando mostrava saber do seu ofício. Convido o nosso co-comentador a visitar a página do Rolando e talvez não leve muito tempo a perceber que o Rolando mostra ser uma daquelas pessoas que, ao contrário do que é habitual no nosso país, não reduz a filosofia a uma história das ideias ou a uma simples exegese dos textos sagrados da filosofia. A filosofia serve para discutir racionalmente assuntos que são logicamente anteriores a todos os outros (entre os quais os que podem ser discutidos pelas ciências). É claro que é bom conhecer a história da filosofia ou perceber o que disseram os filósofos do passado, mas a única razão que o justifica é o facto de estes terem produzido argumentos importantes para discutir os problemas que nos preocupam. Para o filósofo a história da filosofia e a hermenêutica são meios e não fins em si mesmos. A filosofia parte de problemas e visa a discussão (informada e racional) de problemas.
Os editores do logosfera ficam muito satisfeitos por saber que o nosso blogue é útil para outros colegas professores, pois assim sentimos que beneficiamos alunos que, de outro modo, não poderíamos beneficiar. Agradeço ao Rolando a sua simpatia e o seu comentário certeiro.
Carlos Marques

Anónimo disse...

Gay