domingo, janeiro 18, 2009

Arte e Terror


Retrato de Rebecca Gratz, Thomas Sully (1783/1872)

Este conto foi inspirado num retrato do pintor americano Thomas Sully que Poe viu numa galeria da 4ª Avenida.

Para aqueles alunos que adoram uma boa história de terror


O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Tratava-se de uma cabeça simples, com ombros, o todo no estilo a que se chama, em linguagem técnica, modo de vignette, muito ao modo de ser de Sully das suas cabeças predilectas. Os braços, o seio, e mesmo as pontas dos cabelos radiosos, fundiam-se imperceptivelmente na sombra vaga mas profunda que servia de fundo ao conjunto. A moldura era oval, magnificamente dourada e com lavores a prata de gosto mourisco. Como obra de arte, nada de mais admirável se podia encontrar do que a própria pintura. mas pode muito bem ser que não fosse nem a execução da obra, nem a beleza imortal da fisionomia, que me tivessem impressionado tão súbita e fortemente. Ainda menos devia eu acreditar em que a minha imaginação, saindo de um semi-sono, houvesse tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi primeiro que os pormenores do desenho, o estilo da vinheta e o aspecto da moldura teriam dissipado imediatamente um tal encantamento e me teriam evitado qualquer ilusão, mesmo momentânea. Enquanto fazia estas reflexões e muito vivamente, permaneci, meio sentado, meio estendido, talvez uma hora inteira. Por fim, tendo finalmente descoberto o verdadeiro segredo do seu efeito, tornei a deixar-me cair na cama. Adivinhara que o encanto da pintura era uma expressão vital absolutamente adequada à própria vida, que a princípio me fizera estremecer e, por fim, me confundira, subjugara, aterrorizara. Com um pavor profundo e respeitoso, (...) agarrei logo no volume que continha a análise dos quadros e a sua história. Indo direito ao número que designava o retrato oval, li a narrativa vaga e singular que segue:


" Era uma jovem de uma beleza rara, e que não era menos amável ou cheia de alegria. E maldita foi a hora em que viu, e amou, e desposou, o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero e tendo já encontrado uma esposa na sua Arte; ela, uma rapariga de uma beleza muito rara e não menos amável do que cheia de alegria: só luz e sorrisos, e a galhofa de um pavão novo; amando e prezando as coisas; apenas odiando a Arte que era sua rival; apenas temendo a paleta e os pincéis, e os outros instrumentos importunos que a privavam da presença do seu adorado. Foi uma coisa terrível para esta dama ouvir o pintor falar do desejo de pintar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente, e sentou-se com doçura durante longas semanas, no sombrio e alto quarto da torre, onde a luz se filtrava pálida pelo tecto sobre a tela. Mas ele, o pintor, empenhava-se a fundo na obra, que avançava hora a hora, dia a dia. E era um homem apaixonado, estranho e pensativo, que se perdia em devaneios; de tal modo que não queria ver que a luz que tão lugubremente caía naquela torre isolada, minava a saúde e o espírito da mulher que elanguescia visivelmente para todos, excepto para ele. Contudo, continuava a sorrir, sem jamais se lastimar, porque via que o pintor sentia um prazer vivo e ardente no seu trabalho e trabalhava noite e dia para pintar o que tanto amava. Os que contemplavam o retrato falavam em voz baixa da sua semelhança, como uma maravilha e como uma prova, não menor, da força do pintor e do seu amor profundo por aquela que pintava tão miraculosamente bem. Mas, por fim, como a tarefa se aproximasse do seu termo, ninguém mais foi admitido na torre, porque o pintor enlouquecera devido ao ardor do seu trabalho, e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para fitar a figura da mulher. E não queria ver que as cores que expunha na tela eram tiradas das faces daquela que se achava sentada perto dele. E, quando muitas semanas passaram e pouco restava para fazer, apenas um retoque na boca e uma cor clara e transparente no olhar, o espírito da dama palpitou ainda como a chama no bico de um candeeiro. E então foi dado o retoque, a cor clara e transparente foi colocada; e durante um momento o pintor manteve-se em êxtase diante do trabalho terminado; mas um minuto depois, enquanto ainda o contemplava, estremeceu, tornou-se pálido, - e foi atingido pelo pavor; gritando com uma voz retumbante: 'Na verdade, é a própria Vida!', virou-se bruscamente para encarar a bem-amada: ela estava morta!"
Edgar Allan Poe, Contos Fantásticos, Guimarães Editores, Lisboa, 2002
Tradução de João Costa

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei do conto.
Obriga-nos a pensar e reporta-nos a uma relatividade no tempo e no espaço, e a uma realidade com que todos vivemos.
Aquilo que nos apaixona pode levar a que por sua admiração, por egoísmo, luta ou dedicação, o belo acabe por se transformar apenas nisso "um objecto belo", e quando essa admiração é levada ao limite, à loucura e cegueira, algo morre, tal como a esposa do pintor deste conto.
Não é uma história de terror, parece-me uma realidade contemporânea (espero que pensem nisso).