terça-feira, janeiro 13, 2009

AS AVENTURAS ASSOMBROSAS DE UM FANÁTICO DE JOGOS DE COMPUTADOR, PARTE 3: o Jaime põe os filósofos às aranhas


O que é o cepticismo?
0 argumento que acabamos de examinar - o de que não conhecemos nada sobre o mundo que nos cerca - chama-se argumento céptico. Os cépticos sustentam que, na verdade, não sabemos o que pensamos que sabemos. E a afirmação de que não sabemos nada sobre o mundo que nos cerca chama-se cepticismo sobre o mundo exterior.

Cepticismo "versus" senso comum
A visão do senso comum, é claro, sustenta que de factconhecemos o mundo exterior. Na verdade, se resolvesse dizer, "não sei se as árvores existem", especialmente se estivesse a olhar para uma árvore em plena luz do dia, os outros achariam que tinha enlouquecido.
Mas os cépticos achariam que estava certo. Não sabemos se árvores existem. 0 senso comum está enganado.

Outros exemplos de enganos do senso comum
Os argumentos dos cépticos podem deixar algumas pessoas muito irritadas. Sabermos que as árvores existem é uma das nossas crenças mais básicas - como costumo dizer, sentimos que é isso é apenas senso comum. Existem muitas crenças que abandonaríamos com muita satisfação, caso alguém conseguisse demonstrar que estamos errados. Mas, quando se trata das crenças mais arraigadas do nosso senso comum - como a crença de que sabemos que as árvores existem -, não ficamos nada satisfeitos por abandoná-las.
Na verdade, ter as nossas crenças mais elementares ameaçadas pode ser uma experiência bem desconfortável, especialmente quando não vemos como defendê-las. Nessas ocasiões muitos ficam enraivecidos. Dizem que é um disparate o que o filósofo está a dizer. "Isso é uma completa estupidez", gritam. "Claro que eu sei que as árvores existem." E retiram-se, ofendidos.
Mas o filósofo pode apontar que em muitos outros casos se comprovou que o senso comum estava errado. Por exemplo, noutros tempos, o senso comum afirmava que a Terra era plana. As pessoas simplesmente achavam que era óbvio que a Terra fosse plana. Afinal, parece plana, não parece? Os marinheiros até tinham medo de chegar ao fim da Terra e cair. Também nessa época algumas pessoas ficavam muito irritadas quando a  sua crença comum era desafiada. "Não seja ridículo", gritavam. "É claro que a Terra é plana." E saíam a bater os pés. Hoje, porém, sabemos que a Terra não é plana. 0 senso comum estava enganado.
(...)
O que os cépticos NÃO afirmam
Vale a pena deixar claro o que os cépticos não afirmam, para não ficarmos confusos. Em primeiro lugar, os cépticos não afirmam saber que nós ou eles somos cérebros numa cuba. Só afirmam que ninguém pode saber de maneira alguma se alguém é um cérebro numa cuba.
Em segundo lugar, eles não afirmam apenas que não podemos ter a certeza absoluta de que o mundo que vemos é real ou virtual. Afirmam muito mais do que isso. Afirmam que não temos razão alguma para acreditar que o mundo que vemos é real e não virtual.
Em terceiro lugar, eles não vão tão longe a ponto de afirmar que ninguém pode saber nada. Afinal, eles próprios reivindicam saber uma coisa: que ninguém pode conhecer o mundo exterior.

Um enigma antigo
Estamos então diante de um enigma difiícil. Por um lado, a visão do senso comum é que sabemos que as árvores existem. Nós não queremos de facto abrir mão dessa visão do senso comum (na verdade, nem estou certo de que poderíamos abrir mão dela mesmo que quiséssemos). Por outro, o céptico tem um argumento que parece mostrar que a nossa visão do senso comum está errada: nós não sabemos que as árvores existem. Qual das visões está certa?
Apesar da roupagem moderna que eu lhe dei, este enigma é na verdade bem antigo. É de facto um dos enigmas filosóficos melhor conhecidos. Ainda hoje, nas universidades do mundo inteiro, os filósofos se debruçam sobre ele. E ainda não conseguiram decidir se os cépticos têm razão. Eu devo admitir: não sei se os cépticos têm ou não razão. Ao longo dos séculos, muitos filósofos tentaram lidar com o cepticismo. Procuraram demonstrar que o senso comum está certo: nós conhecemos efectivamente afinal o mundo que nos cerca. Algumas das suas tentativas para derrotar os cépticos são muito perspicazes. Mas será que alguma delas funciona mesmo? Examinemos agora uma dessas tentativas.

A navalha de Ockham
0 céptico apresenta-nos duas teorias on hipóteses. A primeira hipótese - a hipótese do senso comum – é a de que não somos um cérebro numa cuba: o mundo à nossa volta é real. A segunda é a de que somos um cérebro numa cuba: o mundo que vemos é meramente virtual. 0 céptico diz não haver razão para acreditar na primeira ou na segunda hipótese. Ambas são igualmente bem sustentadas pelo testemunho dos nossos sentidos. De um ou de outro modo, tudo pareceria igual para nos. Então, não se pode saber se a primeira hipótese é verdadeira e a segunda falsa.
Mas temos de convir com os cépticos que a maneira como as coisas se nos apresentam está de acordo com as duas hipóteses. Porém, como explicarei a seguir, daqui não se conclui que a maneira como as coisas se apresentam sustenta igualmente as duas hipóteses. Existe um famoso princípio filosófico que diz que, diante de duas hip6teses, ambas igualmente sustentadas por provas, é sempre razoável acreditar na hipótese mais simples. Esse princípio chama-se navalha de Ockbam. Parece um princípio bastante plausível.

O exemplo das duas caixas
Aqui está um exemplo de como a navalha de Ockham funciona. Imagine que lhe apresentam uma caixa com um botão de lado e uma lâmpada em cima. Constata que, de todas as vezes que aperta o botão, a lâmpada se acende. Se não aperta, a lâmpada fica apagada.
Agora examinemos duas hipóteses opostas que explicam como isso acontece. A primeira hipótese é que o botão e a lâmpada estão ligados por um circuito a uma bateria dentro da caixa. Quando aperta o botão, o circuito completa-se, e a lâmpada acende-se. A segunda hipótese é mais complicada. Diz que o botão é preso a um circuito eléctrico que liga a bateria a uma segunda lâmpada dentro da caixa. Quando se aperta o botão, essa lâmpada interna acende-se. Nessa altura, um sensor de luz dentro da caixa detecta que a lâmpada se acende acciona um segundo circuito eléctrico que liga uma segunda bateria à lâmpada que vê fora da caixa. Isso faz com que a lâmpada de fora se acenda.
Qual das hipóteses acha mais razoável? Sem dúvida, ambas estão de acordo com o que viu: nos dois casos, a lâmpada acende-se quando e só quando carrega no botão. Mas parece errado dizer que as duas hipóteses são igualmente razoáveis. Sem dúvida, é mais razoável acreditar na primeira do que na segunda hipótese, porque a segunda hipótese é menos simples: ela sustenta que há dois circuitos eléctricos na caixa, e não um só.
Podemos usar a navalha de Ockham para vencer o céptico? Talvez. Poderíamos sempre dizer que das nossas duas hipóteses a de que o mundo que estamos a ver é real e a de que é meramente virtual - a primeira é mais simples; porque, enquanto a primeira hipótese diz que só há um mundo, a segunda de facto diz que há dois: há um mundo real, com marcianos, um super-computador, uma cuba e seu o seu cérebro, dentro do qual é criado um segundo mundo virtual que contém árvores, casas, pessoas virtuais, etc. Portanto, dado que a primeira hipótese é mais simples, significa que é a mais razoável.
Por isso, o céptico está errado: é mais razoável acreditar que o mundo que vemos é um mundo real e não virtual, apesar do fato de o modo como as coisas aparecem estar de acordo com as duas hip6teses.

Uma dúvida
0 que acha desta resposta ao argumento céptico? Eu tenho algumas dúvidas quanto a ela. Uma dessas dúvidas é: será que a hip6tese de que o mundo que n6s vemos 6 um mundo real 6 de fato a hip6tese mais simples? Depende do que se entende por mais simples. Na verdade se, de alguns pontos de vista, a primeira hipótese é mais simples, existem aspectos em que é menos simples. Por exemplo: alguém poderia dizer que a segunda hipótese é mais simples, pois ela precisa de muito menos objectos físicos: só dos marcianos, do seu cérebro numa cuba e de um super-computador. Não haveria necessidade alguma de supor que um planeta Terra com todas as suas árvores, casas, cães, gatos, montanhas, carros, etc. realmente existe. 
E alguém ainda poderia dizer que a segunda hipótese é mais simples porque precisa de um número bem menor de mentes. Se toda a sua família, os seus amigos, os seus vizinhos, etc. são meramente virtuais, também as suas mentes seriam virtuais. As únicas mentes reais de que a segunda hipótese necessita são a sua e as dos programadores de computador. Assim, seria de facto mais razoável acreditar que é um cérebro em uma cuba.

Sou uma ilha?
Se o céptico está certo (e não estou a dizer que está), cada um de nós é de uma maneira significativa isolado do mundo que nos cerca. Não sabe nada do mundo exterior, nem tem nenhum motivo para acreditar que habita num mundo com árvores, casas, cães, gatos, montanhas e carros. E também não tem motivo algum para supor que está cercado de outras pessoas. Pois tudo o que sabe, o seu mundo inteiro - incluindo todas as pessoas que há nele (incluindo-me a mim) – é meramente virtual.
É um pensamento bem assustador. Obriga-o a pensar em si de uma maneira bem diferente. Alguém disse um dia: "Nenhum homem é uma ilha." Mas, se o céptico estiver certo, há um sentido em que isso seria falso. Cada um de nós seria um náufrago na sua própria ilha deserta, incapaz de saber alguma coisa do mundo para além do horizonte das nossas próprias experiênclas sensoriais. Estaríamos fechados para o mundo exterior e isolados uns dos outros. Seríamos prisioneiros das nossas próprias mentes. 0 céptico pinta um quadro multo solitário.
Num outro sentido, porém, o cepticismo pouco importa. Não altera em nada nossa vida quotidiana. Mesmo os cépticos continuam a viver sua rotina diária. Alimentam os seus gatos. Lavam as suas roupas. Vão trabalhar. Encontram um amigo para tomar café. Nem mesmo o céptico consegue realmente evitar acreditar que o mundo que vê é real, apesar de não encontrar razão para acreditar que é real. Parece que nascemos naturalmente crentes: não podemos fugir a isso.
Mas tem o céptico razão? Eu não tenho a certeza. 0 que acha?

Stephen Law, Os Arquivos Filosóficos (São Paulo, 2003, págs. 60-69). Adaptação da tradução brasileira. O título principais não está no original.

1 comentário:

João Neto disse...

Excelente série de posts. Muito obrigado pelo trabalho que tiveram!