quarta-feira, outubro 07, 2009

Radicalismos 2

Disseste que devemos à literatura praticamente tudo o que somos e o que temos sido. Se os livros desaparecessem, a história desapareceria, e os seres humanos também desapareceriam. Estou certa que tens razão. Os livros não são apenas a soma arbitrária dos nossos sonhos e da nossa memória. Dão-nos também o modelo da auto-transcendência. Alguns pensam ler apenas como uma forma de escape: um escape do mundo “real” de todos os dias, para um mundo imaginário, o mundo dos livros. Os livros são muito mais. São uma forma de ser completamente humano.
Sinto ter de te dizer que os livros são hoje considerados como uma espécie em extinção. Por livros, entendo também as condições de leitura que tornam possível a literatura e os seus efeitos na alma. Em breve, dizem, acederemos a qualquer texto disponível nos "livros on-line" e será possível modificar a sua aparência, colocar-lhe questões, “interagir” com eles. Quando os livros se tornarem “textos” com os quais “interagimos” de acordo com um critério de utilidade, a palavra escrita tornar-se-á simplesmente um outro aspecto da nossa realidade televisiva orientada para a publicidade. Este o glorioso futuro que nos está ser criado e prometido, como algo mais “democrático”. Claro, isso não significa nada menos do que a morte do universo interior– e do livro.


Susan Sontag, A letter to Borges, Junho 1996



in Where the stress falls,Penguin books, 2009, Londres, p.112




Tradução Helena Serrão

4 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto, nada como um bom livro para nos tirar da escuridão do abismo, porem penso que a escuridão do abismo, é essencial para que os livros ganhe asas para voar



Maior valor no seu blog. Hugo Dias Perpétuo.

Helena Serrão disse...

Hugo: esta carta a Borges é assim como um tributo à obra, aos livros que fazem a obra, e uma demarcação do livro em relação ao texto digital mais acessível e fácil. Será essencial talvez ler Borges, os seus livros e os ensaios da Sontag.
Obrigada pelo comentário, esperemos que a escuridão do abismo nos dê ganas para de lá sair!
Helena Serrão

Alexandre Poço disse...

Muitas vezes me questiono porque é que o progresso é apenas determinadas novas formas de poder fazer as coisas?! Não entendo. Para mim, será também um progresso literário, se se conseguir que os livros vão persistindo e tendo maior quota de mercado do que o simples clique na internet. Porém, esta posição que tomo, ou seja, que defendo a continuidade da forma escrita na literatura, será invariavelmente acusada pelos "progressistas" de ser do tempo da pedra! Estes padrões e estas definições de "Progresso" ainda me fazem muitas confusões, pois não compreendo a autoridade de uns em venderem a sete ventos que aquilo que apresentam (só por ser uma nova forma) é sinónimo de progresso. Por isso, até me explicarem, viverei sem problemas na dita idade da pedra em que alguns dizem que vivo.

Cumprimentos

Helena Serrão disse...

Alexandre: desculpe o atraso no comentário o que não tem desculpa pois quando o li assaltou-me a vontade de responder. Sim, concordo, nada poderá substituir o livro e o prazer de ler livros, quando falo de livros falo nesses objectos que pegamos na mão, folheamos, sentimos, antes mesmo de nos fazerem disparar o espírito. É o objecto, o seu toque, o seu cheiro que nos prende. O mistério das letrinhas passando nas páginas porosas. Progresso para que vos quero? Há certas coisas que não mudam, são o que são e como são. Não esconjuro a Internet, ela em nada reduziu o gosto pela leitura e pelos livros, pelo contrário.Cumprimentos e boas aulas!
Helena Serrão