segunda-feira, abril 23, 2012

O que caracteriza o conhecimento científico?


O primeiro carácter do conhecimento científico, reconhecido até por cientistas e filósofos das mais diversas correntes, é a objectividade, no sentido de que a ciência intenta afastar do seu domínio todo o elemento afectivo e subjectivo, deseja ser plenamente independente dos gostos e das tendências pessoais do sujeito que a elabora. Numa palavra, o conhecimento verdadeiramente científico deve ser um conhecimento válido para todos. A objectividade da ciência, por isso, pode ser também, e talvez melhor, chamada intersubjectividade, até porque a evolução recente da ciência, e especialmente da Física, mostrou a impossibilidade de separar adequadamente o objecto do sujeito e de eliminar completamente o observador. Este reconhecimento que é essencial na teoria da relatividade e na nova Física quântica, torna o carácter da objectividade mais complexo e problemático do que parecia no século [XIX]; todavia, não elimina de modo algum da ciência o propósito radicalmente objectivo.
Outro carácter universalmente conhecido é a positividade, no sentido de uma plena aderência aos factos e de uma absoluta submissão à fiscalização da experiência. (...). O conceito de positividade como recurso à experiência e adesão aos factos era ainda mais vago, e, nesse tempo (no século [XIX]), demasiado restrito, não só em Filosofia, como no própria ciência; o que teria, por exemplo, excluído perentória e definitivarnente a astrofísica e toda a teoria atómica das quais os cientistas tiveram que reconhecer a legitimidade. Só recentemente, por obra de Einstein, e mais explicitamente de Heisenberg, a positívidade da ciência se precisou na operatividade dos conceitos científicos, segundo a qual um conceito não tem direito de cidadania ern ciência se não for definido mediante uma série de operações físicas, experiências e medidas ao menos idealmente possíveis. Tal precisão permite, por um lado, reconhecer claramente a não positividade de conceitos como o de espaço e de tempo absolutos e, por outro lado, admitir como positivos elementos não efectivamente experimentáveis, quando a não experimentalidade é devida à impossibilidade prática e não teórica, como a noção de ciclo perfeitamente reversível a toda a astrofísica. Tal previsão, além disso, permite compreender também a positividade da matemática. (...) Não no mesmo sentido das ciências experimentais. Introduzindo o conceito de operatividade, a positividade da matemática significa que as suas noções são implicitamente definidas pelo conjunto de axiomas e postulados formulados na sua base e segundo os quais as noções são utilizáveis.
O terceiro carácter do conhecimento científico reside na sua racionalidade. Não obstante a oposição de toda a corrente ernpirista, a ciência moderna é essencialmente racional, isto é, não consta de meros elementos empíricos mas é essencialmente uma construção do intelecto. (...) A ciência pode ser definida como urn esforço de racionalização do real; partindo de dados empíricos, através de sínteses cada vez mais vastas, o cientista esforça-se por abraçar todo o domínio dos factos que conhece num sistema racional, no qual de poucos princípios simples e universais possam logicamente deduzir-se as leis experimentais mais particulares de campos à primeira vista aparentemente heterogéneos.
Além disto, os cientistas modernos verificam unanimemente no conhecimento científico um carácter muito alheio à mentalidade científica do século [XIX], o da revisibilidade. Não há nem nas ciências experimentais, nem mesmo na matemática, posições definitivas e irreformáveis. Toda a verdade científica aparece, em certo sentido, como provisória, susceptível de revisão, de aperfeiçoamento, às vezes mesmo de uma completa reposição em causa. Todos os conhecimentos científicos são aproximados, quer pela imperfeição das observações experimentais em que se fundam, quer pela necessária abstracção e esquematização com que são tratados. Os conceitos de adequação total e perfeita devem ser substituídos pelos de aproximação e validez limitada. Esta nova mentalidade científica que deve ser mantida num só equilíbrio é principalmente o fruto de numerosas crises e revoluções da ciência (...).
Finalmente, um último carácter do conhecimento científico é a autonomia relativamente à Filosofia e à . A ciência tem o seu próprio campo de estudo, o seu método próprio de pesquisa, uma fonte independente de informações que é a Natureza. (...) Isto não significa que a Filosofia não possa e não deva levar a termo uma indagação crítica sobre a natureza da ciência, sobre os seus métodos e os seus princípios [uma indagação levada a cabo pela Epistemologia ) e que o cientista não possa tirar vantagem do conhecimento reflexivo, filosófico e crítico da sua mesma actividade de cientista. (...) Mas em nenhum caso a ciência poderá dizer-se dependente de um sistema filosófico ou poderá encontrar numa tese filosófica uma barreira-limite que impeça a priori a aplicação livre e integral do seu método de pesquisa. E o mesmo se dirá no que respeita à fé: ela poderá constituir uma norma directriz e prudencial para o cientista, enquanto homem e crente, nunca será uma norma positiva ou restritiva para a ciência enquanto tal.

F. Selvaggi, Enciclopédia Filosófica.

segunda-feira, abril 02, 2012

Matéria e Espírito.

Embora a Idade Média, a Antiguidade ,  incluindo a humanidade inteira desde os seus primeiros balbucios, tivessem  vivido na convicção de uma alma substancial, na segunda metade do século XIX, assiste-se ao nascimento de uma psicologia "sem alma".Sobre a influência do materialismo científico, tudo o que não pode ver-se com os olhos, nem apreender-se com as mãos é duvidoso , é logo suspeito de ser metafísico, e torna-se comprometedor. Desde esse momento, só é "científico", e por consequência admissível,  o que é manifestamente material e  pode ser deduzido de causas acessíveis aos sentidos. (...)A crença na substancialidade do espírito cedeu, pouco a pouco, ante uma afirmação cada vez mais intransigente da substancialidade do mundo físico, até que, ao fim -depois de uma agonia de quase quatro séculos - , os representantes mais avançados da consciência europeia, pensadores e sábios, considerarão o espírito como totalmente dependente da matéria e das causas materiais.
Seria um erro, sem dúvida,  imputar à filosofia e às ciências naturais uma inversão tão radical. Sempre houve numerosos filósofos e homens de ciência inteligentes que não deixaram de protestar, graças a uma suprema intuição vinda da profundidade do seu pensamento, contra esta inversão irracional das concepções: mas era difícil imporem-se, perdiam popularidade e a sua resistência era impotente para vencer a preferência sentimental e universal que - como marca de fundo - levou a ordem física até ao pináculo. Não se pense que transformações tão radicais no seio da concepção das coisas possam ser fruto de reflexões racionais; pois acaso existem especulações racionais capazes de provar ou negar alternativamente o espírito ou a matéria? Estes dois conceitos (cujo conhecimento nos cabe esperar de todo o contemporâneo culto) não são símbolos notáveis de factores desconhecidos, cuja existência é proclamada e abolida segundo os humores, os temperamentos individuais e os altos e baixos do espírito da época. Nada impede a especulação intelectual de ver a "psique" como um fenómeno bioquímico complexo, reduzindo-a assim, em última análise, a um jogo de electrões, ou, pelo contrário, decretar que é vida espiritual  a aparente ausência de norma que reina no centro do átomo.
A metafísica do espírito, ao longo do século XIX, teve que ceder  lugar, a uma metafísica da matéria; intelectualmente falando, isto não é mais que um capricho engraçado, mas do ponto de vista psicológico significa uma revolução inaudita na visão do mundo: o mais além toma assento neste mundo; o fundamento das coisas, a distribuição dos fins, as significações últimas, não devem sair das fronteiras empíricas; se dermos crédito à razão ingénua, parece que toda a interioridade se converte em exterioridade visível, e o valor não obedece senão ao critério do suposto acontecimento.

"Los complejos y el inconsciente", Carl Jung, Alianza Editorial, 1986, Madrid, p.9,10 e 11

Tradução do espanhol Helena Serrão
Título original: "L´homme à decouverte de son âme"


O nosso espírito de época resiste a qualquer reflexão intelectual, mesmo capaz ou brilhante, a imunidade do espírito de época torna-o pesado e, se neste texto são salientes os seus aspectos irracionais, ele não se reduz à sua irracionalidade, pois pode ser analisado e compreendido. Logo, resta-nos continuar a resistir à uniformização, não embalar em apologias ou críticas monocórdicas mas não deixar de admitir, por mais que nos doa: o pensar geral, não se modifica com as mais brilhantes reflexões, é preciso mais, muito mais.