A inversão de que trato aqui, a consequência das descobertas de Galileu, embora tenha sido muitas vezes interpretada em termos de inversões tradicionais (1) e, portanto, como integrando a história ocidental das ideias, é de natureza completamente diferente. A convicção de que a verdade objectiva não é dada ao homem e que ele só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz não advém do cepticismo, mas de uma descoberta demonstrável e, portanto não leva à resignação, mas a uma actividade redobrada ou ao desespero. A perda do mundo na filosofia moderna, cuja introspecção descobriu a consciência como sentido interior com o qual o indivíduo sente os seus sentidos, e verificou que ela era a única segurança da realidade, difere não só em grau da antiga suspeita dos filósofos em relação ao mundo e aos outros seres que com ele compartilhavam o mundo; agora, o filósofo já não volta as costas a um mundo de enganosa perecibilidade para encarar outro mundo de verdade eterna mas volta as costas a ambos e recolhe-se dentro de si mesmo. O que descobre na região do ser interior, é, novamente, não uma imagem cuja permanência pode ser observada e contemplada, mas, pelo contrário, o constante movimento da percepções sensoriais e a actividade mental, em movimento não menos constante. Desde o século XVII, a filosofia produziu os seus melhores e menos discutidos resultados quando investigava, num supremo esforço de auto-inspecção, os processos dos sentidos e da mente. Sob este aspecto grande parte da filosofia moderna é, realmente uma teoria da cognição e da psicologia; e nos poucos casos em que as potencialidades do método cartesiano de introspecção foram plenamente realizadas por homens como Pascal, Kierkegaard e Nietzsche, somos tentados a dizer que os filósofos experimentaram com o próprio ser não menos radicalmente e talvez mais afoitamente que os cientistas experimentaram com a natureza.
Por
mais que possamos admitir a coragem e respeitar a extraordinária engenhosidade
dos filósofos no decurso de toda a era moderna, não se pode negar que a sua
influência e a sua importância diminuíram como nunca antes ocorrera. Não foi no
pensamento da Idade Média, mas no da era moderna, que a filosofia passou a
segundo ou mesmo a terceiro plano. Depois de Descartes ter baseado a sua
filosofia nas descobertas de Galileu, a filosofia parece condenada a seguir
sempre um passo atrás dos cientistas e das suas descobertas, ainda mais
espantosas que as de Galileu cujos princípios tenta arduamente descobrir ex post facto e ajustar a alguma interpretação geral
da natureza do conhecimento humano. Como tal, porém a filosofia não era
necessária aos cientistas que - pelo menos até ao nosso tempo – acreditavam não
precisar de uma serva, e muito menos de uma que pretendesse “carregar o archote
à frente da sua preciosa ama” (Kant). Os filósofos tornaram-se
epistemologistas, preocupados com uma teoria geral da ciência da qual os
cientistas não necessitavam, ou tornaram-se realmente aquilo que Hegel queria
que fossem: os órgãos do Zeitgeist,
os porta-vozes através dos quais o estado de espírito geral da época era
expresso com clareza conceptual. Em ambos os casos quer pesquisassem a natureza
ou a história, tentavam compreender e fazer face ao que estava a acontecer sem
a sua ajuda. Obviamente a filosofia sofreu mais com a modernidade que qualquer
outro campo de ocupação humana; e é difícil dizer que sofreu mais em
decorrência da quase automática elevação da actividade a uma dignidade
completamente inesperada e sem precedentes ou da perda da verdade tradicional,
ou seja, do conceito de verdade que havia por trás de toda a nossa tradição.
Hannah
Arendt, A condição Humana, Relógio D’Água, Lisboa 2001, pág. 359, 360, 361
(1) A
inversão operada por Platão coloca-se em relação aos conceitos Homéricos; assim
a vida em comum é a caverna quando para Homero seria a luz, pelo contrário para Platão a luz é
a da alma fora da convivência com os outros homens. O que em Homero era sombra,
a alma, é em Platão o inverso, é o corpo que é a sombra da alma. Exemplo que,
para Arendt, pretende demonstrar a inversão operada pela filosofia em relação
aos conceitos de acção e contemplação tradicionais. A vida activa dos filósofos
é a vida do pensamento que pressupõe o prévio afastamento e a distanciação da
vida mundana da polis mas que não prescinde dela, pelo contrário, deverá querer
modelá-la e transformá-la de acordo com o seu lugar privilegiado, ou
compreendê-la conceptualmente e impor-lhe limites éticos.
Essa
inversão operada por Platão da vida activa para a vida contemplativa, na
hierarquia das actividades consideradas superiores, vai ter como consequência o
afastamento progressivo da
filosofia dos assuntos mundanos e consequentemente da sua capacidade para
intervir no mundo real, no mundo dos acontecimentos. Com a introdução do
conhecimento moderno esta hierarquia vai viver um novo estatuto, a vida activa
e a vida contemplativa ganham um novo significado; a vida activa é condicionada
pela produção, o homem da polis, destinado segundo a tradição grega, aos
grandes feitos e grandes palavras, dá lugar ao homem fazedor, aquele que produz
os instrumentos que permitem transformar o mundo, o que é o mesmo que produzir
um outro mundo não acessível aos sentidos, (uma vez que o mundo que é dado a ver por estes novos instrumentos não é o mundo que se vê em comum)o mundo científico/tecnológico. A
Filosofia ficará remetida para o exame da consciência, afastamento do comum na
medida em que o produto da consciência é algo que não pode ser partilhado
enquanto fluxo incessante de representações. Marca de uma outra inversão em relação ao projecto
filosófico da tradição antiga que exigia distanciação em relação ao comum de
modo a compreendê-lo, o novo projecto busca a compreensão do sujeito
enquanto singularidade, o comum passa a ser, não o espaço sensível dos
acontecimentos mas o espaço universal da linguagem racional, a matemática,
concebido como o único espaço onde os humanos se podem entender. Deste
modo a linguagem da Filosofia passa a ser algo fora da linguagem comum, algo
sobre o qual os homens não se entendem, um espaço de ideias que não versam o
mundo exterior ao homem e também não versam o que é comum aos homens.
Helena Serrão
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