É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as
formigas, que vivem sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas
por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão seus
juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar
umas às outras o que consideram adequado para o beneficio comum. Assim, talvez
haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo.
Ao que tenho a responder o seguinte. Primeiro, que os homens estão constantemente
envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no
caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o
ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não
acontece.Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem comum
e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual,
acabam por promover o bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na
comparação com os outros homens, e só pode tirar prazer do que é eminente.
Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso
da razão, elas não vêem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua
existência comum. Ao passo que entre os homens são em grande número os que se
julgam mais sábios, e mais capacitados que os outros para o exercício do poder
público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações, uns de uma
maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra
civil.Quarto, que essas criaturas, embora sejam capazes de um certo uso da voz,
para dar a conhecer umas às outras seus desejos e outras afecções, apesar
disso carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns homens são
capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é
mau sob a aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância
visível do bem ou do mal, semeando o descontentamento entre os homens e
perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem. Quinto, as criaturas
irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e
consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com os seus
semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais
satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir a sua sabedoria
e para controlar as ações dos que governam o Estado. Por último, o acordo
vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge apenas
através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar que
seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e
duradouro o seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e
que dirija as suas ações no sentido do beneficio comum.
A única maneira de
instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros
e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente
para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam
alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem,
ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir as suas diversas vontades, por pluralidade
de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma
assembleia de homens como representante das suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os actos que aquele que representa a
sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e
segurança comuns; todos submetendo assim as suas vontades à vontade do
representante, e as suas decisões à sua decisão. Isto é mais do que consentimento,
ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa,
realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como
se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro o meu direito de
governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a
condição de transferires a ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante
todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama
Estado, em latim civitas.
É esta a
geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes)
daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, a nossa paz e
defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no
Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim
inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da
paz no seu próprio país, e ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É
nele que consiste a essência do estado, a qual pode ser assim definida: Uma
pessoa de cujos actos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os
outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a poder usar a
força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama
soberano, e dele se diz que possui poder soberano.Todos os restantes são
súbditos.
Tradução de João Paulo Monteiro.
Thomas Hobbes, Leviatã, p.59,60, 61
Foto: Cartier Bresson
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