quarta-feira, dezembro 30, 2015

EU - TU Um texto para celebrar


Martin Buber, 1878/1965

O EU da palavra-princípio EU-TU é diferente do EU do palavra-princípio EU-ISSO.
O EU da palavra-princípio EU-ISSO aparece como egótico e toma consciência de si como sujeito (de experiência e de utilização).
O EU da palavra-princípio EU-TU aparece como pessoa e toma consciência como subjectividade, (sem genitivo dela dependente).
O egótico aparece na medida em que se distingue de outros egóticos.
A pessoa aparece no momento em que entra em relação com outras pessoas.
O primeiro é a forma espiritual da diferenciação natural, a segunda é a forma espiritual do vínculo natural.
A finalidade da separação é o experienciar e o utilizar, cuja finalidade é, por sua vez, “a vida”, isto é, o contínuo morrer no decurso da vida humana.
A finalidade da relação é o seu próprio ser, ou seja, o contacto com o TU. Pois, no contacto com cada TU, toca-nos um sopro da vida eterna.
Quem está na relação participa de uma actualidade, quer dizer, de um ser que não está unicamente nele nem unicamente fora dele. Toda actualidade é um agir do qual EU participo sem poder dele me apropriar. Onde não há participação não há actualidade. Onde há apropriação de si não há actualidade. A participação é tanto mais perfeita, quanto o contacto do TU é mais imediato.
O EU é actual através de sua participação na actualidade. Ele se torna mais actual quanto mais completa é a participação.
Mas o EU que se separa do evento de relação em direcção da separação, consciente desta separação, não perde sua actualidade. A participação permanece nele, conservada como potencialidade viva; ou então, em outro termo usado quando se trata da mais elevada relação e que pode ser aplicado a todas as relações, “a semente permanece nele”. É este o domínio da subjectividade, onde o EU toma consciência simultaneamente tanto de seu vínculo quanto de sua separação. A autêntica subjectividade só pode ser compreendida de um modo dinâmico, como a vibração de um EU no seio de sua verdade solitária. É aqui, também, o lugar onde irrompe e cresce o desejo de uma relação cada vez mais elevada e absoluta, o desejo de uma participação total com o Ser. Na subjectividade amadurece a substância espiritual da pessoa.
                A pessoa toma consciência de si como participante do ser, como um ser-com, como um ente. O egótico toma consciência de si como um ente-que-é-assim e não-de-outro-modo. A pessoa diz: “Eu sou”, o egótico diz: “eu sou assim”. “Conhece-te a ti mesmo” para a pessoa significa: conhece-te como ser; para o egótico: conhece o teu modo de ser. Na medida em que
o egótico se afasta dos outros, ele se distancia do Ser.
Com isso não se quer dizer que a pessoa “renuncie” ao seu modo de ser específico, mas somente isso: este não é somente o seu ponto de vista, mas a forma necessária e significativa de ser. Ao contrário, o egótico se delicia com seu modo-de-ser específico que ele imaginou ser o seu. Pois, para ele, conhecer-se significa fundamentalmente, sobretudo estabelecer uma manifestação efectiva de si e que seja capaz de iludi-lo cada vez mais profundamente; e pela contemplação e veneração desta manifestação procura uma aparência de conhecimento de seu próprio modo-de-ser, enquanto que o seu verdadeiro conhecimento poderia levar ao suicídio ou à regeneração.
A pessoa contempla-se o seu si-mesmo, enquanto que o egótico ocupa-se com o seu “meu”: minha espécie, minha raça, meu agir, meu génio.
O egótico não só não participa como também não conquista actualidade alguma. Ele se contrapõe ao outro e procura, pela experiência e pela utilização, apoderar-se do máximo que lhe é possível. Tal é a sua dinâmica: o pôr-se à parte e a tomada de posse; ambas operações se passam no ISSO, no que não é actual. O sujeito, tal como ele se reconhece, pode apoderar-se de tudo quanto queira, que daí ele não obterá substância alguma, ele permanece como um ponto, funcional, o experimentador, o utilizador, e nada mais. Todo o seu modo de ser múltiplo ou sua ambiciosa “individualidade” não podem lhe proporcionar substância alguma.
                Não há duas espécies de homem; há, todavia, dois pólos do humano.
Homem algum é puramente pessoa, e nenhum é puramente egótico; nenhum é inteiramente actual e nenhum totalmente carente de actualidade. Cada um vive no seio de um duplo EU. Há homens entretanto, cuja dimensão de pessoa é tão determinante que se podem chamar de pessoas, e outros cuja dimensão de egotismo é tão preponderante que se pode atribuir-lhes o nome de egótico. Entre aqueles e estes se desenrola a verdadeira história.

Martin Buber, Eu-Tu, (1923), S. Paulo, Moraes, 1974, pp.75,79

Tradução do alemão de NEWTON AQUILES VON ZUBEN


terça-feira, dezembro 08, 2015

Consumidor: um ser emocional com cérebro de homem das cavernas



Reduzir oxigénio para tornar a compra mais impulsiva é uma das estratégias das marcas com base nas neuro-ciências.
As decisões dos consumidores são 100% emocionais e não têm nada de racional. Ao contrário do que os especialistas em marketing tomam muitas vezes como garantido, os prós e contras de um produto pesam pouco da decisão de compra. O que é verdadeiramente importante é o capital emotivo que associamos à compra. A decisão, garante o neurologista, é tomada muito antes de termos consciência dela. “O consumidor é um ser irracional que responde a necessidades humanas que estão codificadas no nosso cérebro, praticamente desde os tempos em que vivíamos em cavernas”, explicou ao Diário Económico o neurologista Rodrigo Cunha.
Descobertas das neuro-ciências, como esta, podem fazer a diferença na estratégias de ‘branding’. “A vantagem das neuro-ciências é que podem olhar para o cérebro e medir modificações que correspondem ao processo de tomada de decisão, antes do indivíduo sequer ser capaz de relatar que a decisão foi tomada. Estamos a falar de uma fracção de segundos”, explica Rodrigo Cunha.É uma prática comum no Reino Unido, algumas grandes superfícies baixarem os teores de oxigénio presentes nas grandes superfícies, onde o ar pode ser controlado. A objectivo, tal como explica Rodrigo Cunha, é surpreendente. O último sítio a que o sangue chega com oxigénio é à parte da frente do cérebro, exactamente a zona onde aferimos os prós e os contras e prevemos consequências futuras das nossas acções. Se essa zona tem menos oxigénio ficamos mais impulsivos e tendemos a ser mais controlados pelo nosso lado emocional. Resultado: compramos mais, mas também estamos mais predispostos a entrar em conflitos, nem que seja porque alguém bate no nosso carrinho de compras. Mais: basta olharmos para um alguém que passa com um carrinho cheio, teremos uma maior apetência para querer encher o nosso.
A última campanha mundial que a Mercedes gravou em Portugal com McNamara é um dos casos em que as neuro-ciências foram usadas como ferramenta. Vários anúncios integrados nas campanhas de Natal de supermercados britânicos também recorreram a esta componente, não só para criar para televisão mas também para outros meios como o digital e o ‘outdoor’. (...)
Neste contexto, uma marca torna-se “um atalho que permite reunir uma quantidade muito grande de experiências tidas ao longo da vida, que de uma maneira muito holística recupera várias dessas antigas experiências e permite ou não uma adesão ao conceito que é apresentado”. Este processo envolve tudo o que está à volta da marca, desde o nome à cor. Facilmente associamos o vermelho à Coca-Cola ou o violeta a marcas de chocolate, exemplifica o especialista.
Face ao que as neuro-ciências conhecem hoje, torna-se impossível ao consumidor explicar porque é que prefere um produto a outro, “na medida em que não é esta zona da racionalidade que está por trás desta tomada de decisão”.
A irracionalidade da decisão é tanto maior quanto maior for o envolvimento emocional do consumidor com o produto que vai comprar e não depende da gama do produto. Se a compra de arroz para um cozinheiro pode ser totalmente emocional, para alguém que não cozinha essa escolha pode ser permeável a factores mais racionais como o preço.
Se a necessidade de satisfação emocional é transversal ao ser humano, Rodrigo Cunha acrescenta que as neuro-ciências encontram ligeiras diferenças entre géneros: “As mulheres têm uma maior permeabilidade às componentes emocionais, enquanto os homens têm normalmente barreiras mais fortes para permitir que a emoção tome conta do processo de decisão”.
E quando o poder de compra interfere na decisão? O especialista garante que, sobretudo nos produtos básico, o componente emocional continua a ter a maior importância. Para Pedro Diogo Vaz, esta é a prova de que “a influência que o activo marca acaba por ter no consumidor está muito longe de ser de curto prazo”.

Artigo de Catarina Madeira no Diário Económico de 7 de Dezembro de 2015

Análise: Continua a ser obrigatório o uso de palavras que não têm equivalente na língua portuguesa, onde certas novas realidades são codificadas em Inglês mas não em Português. Depois parece-me que esta sociedade impregne do consumo, e determinada por ele, o veja sempre como uma ameaça, como a sociedade cria para tornar a sua criação não uma alternativa de liberdade mas um jugo de terríveis consequências. A retórica funciona nos dois sentidos no bom e no mau, como se essas duas faces fossem a sua mesma credibilidade.

quinta-feira, dezembro 03, 2015

As verdades com que não podemos deixar de contar.


Thomas Hoepker, NY, 1963

O que é a filosofia senão um modo de refletir, não tanto sobre aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, mas sobre a nossa relação com a verdade? Às vezes lamentamo-nos por não existir em França uma filosofia dominante. Muito melhor. Não há nenhuma filosofia soberana, é verdade, mas há uma filosofia ou, melhor, há filosofia em atividade. A filosofia é o movimento pelo qual nos libertamos – com esforços, hesitações, sonhos e ilusões – daquilo que passa por verdadeiro, a fim de buscar outras regras do jogo. A filosofia é o deslocamento e a transformação das molduras de pensamento, a modificação dos valores estabelecidos, e todo o trabalho que se faz para pensar diversamente, para fazer diversamente, para tornar-se outro do que se é. Sob este ponto de vista, os últimos trinta anos foram um período de intensa atividade filosófica. A relação entre a análise, a pesquisa, a crítica ” culta ” ou ” teórica ” e as mudanças no comportamento, a conduta real das pessoas, a sua maneira de ser, a sua relação consigo mesmas e com os outros, foi constante e considerável. Há pouco eu dizia que a filosofia é um modo de refletir sobre a nossa relação com a verdade. É preciso acrescentar: é um modo de perguntar-se: se esta é a relação que temos com a verdade, como devemos comportar-nos?
Creio que já foi feito e que se está a continuar a fazer um trabalho considerável e múltiplo, que modifica, contemporaneamente, o nosso vínculo com a verdade e a nossa maneira de nos comportarmos. E isso faz-se numa  ligação complexa entre uma série de pesquisas e um conjunto de movimentos sociais. É a própria vida da filosofia. É compreensível que alguns lastimem o vazio atual e busquem, na ordem das ideias, um pouco de monarquia. Mas aqueles que, pelo menos uma vez na vida, provaram um tom novo, uma nova maneira de olhar, um outro modo de fazer, esses, creio, nunca sentirão a necessidade de se lamentar porque o mundo é um errado, a história está farta de inexistências; é tempo para que fiquem calados, permitindo assim que não se ouça mais o som da reprovação …
Michel Foucault
Archivio Foucault. Vol. 3.
Estetica dell’esistenza, etica, politica. 1994, pp. 137-144. Tradução portuguesa de Selvino José Assmann.