Grupo III (1ª Parte do Discurso do Método)
NÃO EXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada
indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em
qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é
improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder
de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é
denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a
diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que
outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não
considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é
aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores
virtudes, e os que só andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre
pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito do que os dos
outros; com frequência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão clara e
diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta, quanto alguns outros. E desconheço
quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois,
quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia
dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral
dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre
as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.
Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a
partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a considerações e máximas,
das quais formei um método, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma
gradual o meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco a pouco, ao mais alto nível, a que a
mediocridade de meu espírito e a breve duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já
colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me
mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um
olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase
nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do
progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o
futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja
solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi.
Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre
e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que
nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando
são a nosso favor. Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui,
e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá-la e que,
informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova
forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me utilizar.
Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para
bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha.
Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a
quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este
escrito senão como uma história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns
exemplos que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá razão
de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém, e que todos me
serão gratos por minha franqueza.
Grupo VI
(1ª Parte do Discurso do Método)
Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que, por
intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à
vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Porém, assim que terminei esses estudos, ao
cabo do qual costuma-se ser recebido na classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião.
Pois me encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver
conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a
minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde
imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em algum lugar da Terra.
Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo não havendo me contentado com
ciências que nos ensinavam, lera todos os livros que tratam daquelas que são reputadas as
mais curiosas e as mais raras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os
juízos que os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a
meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares de nossos
mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil em bons espíritos como
qualquer um dos anteriores, O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os
outros e de pensar que não havia doutrina no mundo que fosse tal como antes me haviam feito
presumir.
Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se ocupam nas
escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias ao entendimento dos
livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o espírito; que as realizações notáveis das
histórias o fazem crescer, e que, sendo lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a
leitura de todos os bons livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas
dos séculos passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual
eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloqüência possui forças e belezas
incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras encantadoras; que as
matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem servir muito, tanto para satisfazer os
curiosos quanto para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos
que tratam dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são
muito úteis; que a teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência
de todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a
jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas àqueles que as
cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até mesmo as mais eivadas de
superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas
enganado.
Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a leitura dos
livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. Pois quase a mesma coisa que conversar com
os homens de outros séculos é viajar. E bom saber alguma coisa dos hábitos de diferentes
povos, para que julguemos os nossos mais justamente e não pensemos que tudo quanto é
diferente dos nossos costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada
viram. Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos
estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que
se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se realizam
no presente. Ademais, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que
não o são, e até mesmo as histórias mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das
coisas para torná-las mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase
sempre as circunstâncias mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece
tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles tiram estão
sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a conceber propósitos que
superam suas forças