Excerto da obra "Sem destino" de Imre Kertész
" Em todo o caso, parecia-me que tinha ficado muito tempo
deitado, e estava bem, tranquilo, sereno, sem curiosidade, paciente, aí onde me
tinham colocado. Não sentia frio, nem dor, e só pela razão, não através da
pele, eu percebia as gotas picantes, entre neve e chuva, que me molhavam o
rosto. Devaneava, olhava um pouco o que tinha à frente dos olhos, simplesmente,
sem nenhum movimento supérfluo, nem fadiga: por exemplo, lá em cima, o céu
baixo, cinzento e opaco, mais precisamente, as nuvens invernais de chumbo que deslizavam
preguiçosamente e o escondiam aos meus olhos. Ao mesmo tempo, ele dilacerava-se
algures, fendas imprevistas, buracos mais claros apareciam aqui e ali por um
breve instante, e foi como o súbito mistério de um abismo, de cujo cimo caía
sobre mim uma espécie de raio, um rápido perscrutador olhar cor indefinida, mas
de olhos sem dúvida nenhuma claros, um pouco semelhantes ao do médico a que me
apresentara antigamente em Auschwitz. Instantaneamente, ao meu lado, um objecto
disforme entrou no meu campo de visão: um tamanco, e, do outro lado, uma gorra
de diabo semelhante à minha, dois acessórios pontiagudos – o nariz e o queixo –
no meio, uma depressão cavernosa – um rosto. E, depois, ainda outras cabeças,
objectos corpos – eu compreendi que eram os restos da mudança, os resíduos, diria,
para usar um termo mais preciso, que, sem dúvida, ali tinham sido postos,
entretanto. Algum tempo depois, uma hora, um dia ou um ano, não sei, percebi,
por fim, vozes, ruídos, rumores de trabalho e de organização. A cabeça que
estava ao meu lado levantou-se de repente e, mais abaixo, aos ombros, vi braços
em farrapos de prisioneiro que procuravam levantar o corpo para um espécie de
carroça ou de carreta, sobre outros que aí já se acumulavam.”
Imre Kertész, (1975) Sem
destino, Presença, Lx, pp131, 132
A descrição de um não sentimento, de uma espécie de letargia, onde as capacidades e funções humanas estão suspensas para que a dor a a extrema violência não possam causar um dano irreparável, é a tentativa de passar em palavras uma experiência vivida pelo autor, jovem prisioneiro de vários campos de concentração na Polónia e na Checoslováquia. Compreendemos que o corpo tem uma espécie de mecanismo de baixa manutenção, onde só funciona o que é absolutamente vital para continuar a sobreviver. Esta situação onde, historicamente, foi arredada qualquer autonomia, respeito, ou cuidado pelo indivíduo, assim como suspenso o julgamento individual que pode separar criminosos e inocentes, é também ela, na sua estranheza, monstruosa, uma situação de pré-humanidade que seria apenas cruel e desumana se não fosse legalizada, isto é, criada como lei por pessoas com responsabilidade política e executada minuciosamente por outras pessoas, algumas apenas servis para com a lei, outras, normais cidadãos, cuja oportunidade para serem excelentes cidadãos cometendo toda a espécie de crimes era levada com grande entusiasmo.
2 comentários:
Acredito que tudo aquilo que é vivenciado pela primeira vez é mais imapctante. Sensações e privações experienciadas por um indivíduo de forma recorrente, por mais cruéis que sejam, tornam-se em rotina, e seus impactos mesmo que desconfortáveis não se assemelham em módulo ao impacto original, recebido na primeira interação.
Frases Curtas
Sim, de algum modo, esta experiência configura um modelo em que a crueldade é tomada como normal, é a norma. As acções brutais gratuitas fazem parte da rotina ao ponto de inversão total das normas morais ou dos princípios éticos básicos e, universais. Não se sofre como da primeira vez porque se deixa de ter qualquer espécie de reacção ou pensamento. Obrigada pelo comentário.
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