Raymond Departon, Chicago, 1968
Concluímos, portanto, que a guerra não pertence ao domínio
das artes nem ao das ciências. Ela é mais precisamente parte da existência
social do homem. A guerra é um conflito de grandes interesses, que é resolvido
através do derramamento de sangue - que é a única maneira pela qual ela difere
de outros conflitos. Em vez de compará-la a uma arte, deveríamos compará-la com
maior precisão ao comércio, que também é um conflito de interesses e de
atividades humanas e que está ainda mais próximo da política que, por sua vez,
pode ser considerada uma espécie de comércio em maior escala. A política é,
além do mais, o útero em que se desenvolve a guerra - onde os seus contornos já
existem na sua forma rudimentar, como as características de criaturas vivas em
seus embriões.
A diferença essencial é que a guerra não é o uso da vontade
orientada para um objeto inanimado, como no caso das artes mecânicas, ou para
um corpo que seja animado, mas passivo e submisso, como é o caso da mente e das
emoções humanas nas belas artes. Na guerra, a vontade é orientada para um corpo
animado que reage. Deve ser óbvio que a codificação intelectual utilizada nas
artes e nas ciências é inadequada a uma atividade destas. Ao mesmo tempo, é
evidente que a luta contínua em busca de leis semelhantes às adequadas aos
domínios da matéria inanimada estava fadada a levar a um erro após o outro.
Apesar disto, eram exatamente as artes mecânicas que se esperava que a arte da
guerra imitasse. Era impossível imitar as belas artes, uma vez que eles mesmas
ainda não possuem suficientes leis e regras próprias. Até o momento, todas as
tentativas de formular qualquer uma têm sido consideradas excessivamente
limitadas e parciais, e têm sido constantemente solapadas e abolidas pelas
correntes de opinião, pela emoção e pelos costumes.
(…) Parte do propósito deste livro é verificar se um
conflito de forças vivas, como o que se desenvolve e é decidido na guerra,
continua sujeito a leis gerais, e se estas leis podem proporcionar um guia útil
para a ação. Uma coisa é evidente: esta questão, como qualquer outra que não
ultrapasse a capacidade intelectual do homem, pode ser esclarecida através de
uma mente investigadora, e a sua estrutura interna pode ser revelada até um
certo ponto. Somente isto é suficiente para transformar em realidade o conceito
da teoria.
Quando um ataque de surpresa deixar um exército incapaz de
empregar a sua força de uma maneira ordenada e racional, então o efeito da
surpresa não poderá ser posto em dúvida. Quando a teoria houver determinado que
um ataque envolvente leva a um êxito maior, embora menos certo, teremos que
perguntar se o General que utilizou este envolvimento estava primordialmente
interessado na magnitude do êxito. Se estivesse, escolheu a maneira correta de
agir. Mas se ele o utilizou para tornar o êxito mais certo, baseando a sua
ação, não tanto nas circunstâncias do momento, mas na natureza genérica dos
ataques envolventes, como já ocorreu inúmeras vezes, então ele interpretou mal
a natureza do meio que escolheu e cometeu um erro.
A tarefa da análise e da prova crítica não é muito difícil
em casos deste tipo. Fatalmente será fácil, se nos restringirmos aos propósitos
e aos efeitos mais imediatos. Isto pode ser feito de uma maneira bastante
arbitrária, se isolarmos a questão do seu cenário e a estudarmos somente sob
essas condições.
Mas na guerra, como na vida de uma maneira geral, todas as
partes de um todo estão interligadas e, assim, os efeitos produzidos, por
menores que sejam as suas causas, devem influenciar todas as operações
militares subsequentes e modificar de algum modo o resultado final, por menor
que seja esta modificação. Da mesma maneira, todo meio deve influenciar até
mesmo o propósito final.
Podemos continuar investigando os efeitos produzidos por uma
causa até onde isto parecer valer a pena. Da mesma maneira, um meio não deve
ser avaliado simplesmente em relação ao seu fim imediato: aquele fim deve ser
avaliado como um meio para atingir o próximo e mais elevado e podemos, assim,
seguir uma cadeia de propósitos sequenciais até chegarmos a um que não exija
qualquer justificação, porque a sua necessidade é evidente por si mesma. Em
muitos casos, principalmente naqueles que envolvem ações de vulto e decisivas,
a análise deve ser estendida até o propósito final, que é obter a paz.
Da guerra, CARL VON CLAUSEWITZ,
Tradução do inglês Carlos Nascimento