quarta-feira, dezembro 18, 2024

As inferências lógicas não são psicológicas

 


Thomas Hoepker, Homem na quinta avenida com uma bicicleta adaptada

O âmbito do raciocínio lógico e matemático é muito vasto e qualquer exemplo particular pode ser indubitável para algumas pessoas, mas não para outras. Um bom exemplo é a contraposição (modus tollens): "se p, então q" mais "não p" implica "não p". Nem toda a gente reconhece essa implicação automaticamente, e algumas pessoas podem ter dificuldade em habituar-se à ideia. No entanto, também este raciocinio não pode ser colocado em questão, nem podemos dar-lhe uma leitura subjectiva por meio de observações psicológicas sobre o modo como foi aprendido ou sobre as variações na sua aceitação ou uso em diferentes grupos. Mesmo alguém que seja algo hesitante na sua aplicação terá de o reconhecer como um princípio que, se for verdadeiro, terá umavalidade universal, e não apenas uma validade de um género local ou perspectívico. Pensar nele como umamera práticaou hábito de pensamento seria compreendê-lo mal  - trata-se de um princípio de lógica. Claro que é também um hábito de pensamento (para alguns) e há também questões interessantes sobre as quaus s princípios válidos cujo emprego no nosso pensamento é razo´vel ou mesmo possível em termos práticos, dadas as limitações de tempo e de capacidade mental.Mas   pensar na razão como algo abstraído dos fenómenos psicológicos contingentes do racicíniohumano é compreender as coisasa ao contrário. Oj juízo de que é impossível ou inconcebível que as premissas de uma demonstração sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa apoia-se nas nossas caapacidades e incapacidades para conceber diferentes possibilidades, mas não é umjuízo sobre essas capacidades e o seu objecto não é algo que dependa delas.

Isto torna-se claro como água quando seguimos realmente qualquer curso sobre um raciocínio dedutivo irresistível.É o que torna o exemplo platónico do rapaz no Ménon, tão irresistível. Quando Sócrates lhe faz ver que um quadrado com o dobro da área de um dado quadrado tem de ser o quadrado traçado sobre a diagonal deste último, realiza-o por meio de um argumento completamente persuasivo; e reconhecemos o assentimento do rapaz como o produto da validade do argumento, que tanto ele como nós compreendemos: não há sombra de explicação na direção oposta. "

Thomas nagel, A última palavra, (1997), Lx 1999, Gradiva, p.70, 71,72                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

Faz a simplicidade tornar-se viva

 


Thomas Hoepker, Cinema, Nápoles, 1956

Não peçam aos vossos filhos

que aspirem a ter vidas extraordinárias.

Tal aspiração poderá parecer admirável,

mas é a via dos tolos.

Ajudem-nos, em vez disso, a descobrir o espanto

e a maravilha de uma vida banal.

Mostrem-lhes o gozo de saborear

tomates, maçãs e pêras.

Mostrem-lhes como chorar

aquando da morte de animais de estimação e pessoas.

Mostrem-lhes o prazer infinito

que há no toque de uma mão. 

E façam com que, para eles, o banal se encha de vida.

O extraordinário encarregar-se-á de si mesmo.


William Martin,  (1925/ 2010) 

Tradução de Vasco Gato

domingo, dezembro 01, 2024

Não me interrompam, estou num processo mental!


Ilustração de Madalena Matoso

Uma ideia é uma história de encontros, possibilidades e acasos; é uma experiência que pode demorar anos a concretizar-se e que acontece sempre de forma diferente de pessoa para pessoa. Não é, pois, de estranhar que os investigadores não consigam descobrir a fórmula que leva alguém a ter uma boa ideia (e ainda bem! Porque a fórmula é exatamente o contrário daquilo que a imaginação nos propõe).

No entanto, apesar de não haver um método ou uma fórmula fixa, já se conseguiram identificar algumas etapas ou processos mentais pelos quais todos passamos quando estamos à procura de uma ideia – também já sabemos que por vezes nem parece que estamos à procura e encontramo-la.

Entre quem estuda este tema, são estas as etapas mais ou menos unânimes:

1.       Encontrar a pergunta

2.       Começar a pesquisa

3.       Entrar na fase de fermentação (como o pão)

4.       Disparar ideias

5.       Escolher: esta não, esta sim

6.       Executar e mostrar ao mundo


Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso, Como ver coisas invisíveis, Carcavelos, 2021, Planeta Tangerina, p.117

quarta-feira, novembro 20, 2024

A intolerância não é tolerável




Ian Berry, Praga, 1968

A tolerância ilimitada conduz ao
desaparecimento da tolerância. Se permitirmos uma tolerância ilimitada áqueles que são intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e da tolerância. Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente à opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente.

Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo pelo uso da força; já que muitas vezes elas não estão preparadas para um confronto ao nível da argumentação racional, denunciando à partida qualquer argumento; proíbem os seus seguidores de considerar os argumentos racionais, alegando que eles são enganadores, e ensinam-nos a responder-lhes recorrendo aos punhos ou pistolas.

Devemos, portanto, exigir, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante, e postular como fora da lei qualquer movimento proclamando a intolerância. Devemos ainda considerar como criminosos a perseguição e o incitamento à intolerância, do mesmo modo que qualificamos de crime o incitamento ao homicídio, ao rapto ou ao restabelecimento do mercado de escravos.

Karl Popper, A sociedade aberta e seus inimigos, Porto, 19ragmentos, p. 2
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domingo, outubro 27, 2024

A verdade: uma questão de saber?


 Cristina García Rodero, Sarracín de Aliste, Zamora, Spain. 1990. 

Pergunta: O que é a verdade? Como podemos alguma vez saber que a alcançámos?

Richard Heck: Muitas das questões mais profundas da filosofia são naturalmente expressas sob a forma de questões sobre a verdade. A questão de saber o que é a verdade é, sem dúvida, uma das mais profundas da filosofia. Há vários tipos de respostas: uma proposição é verdadeira se corresponde a um “facto” do mundo; se é coerente com o resto das coisas em que acreditamos; se serve os nossos propósitos práticos; se pode ser verificada com base nas nossas experiências mais imediatas. Todavia, ainda nenhuma destas concepções conquistou a palma, o que levou alguns filósofos a concluírem que a verdade não é uma propriedade muito importante. Voltaremos a eles dentro de instantes.

Podemos ser levados a perguntar o que é verdade por muitas razões diferentes. No caso presente, entendo que a sua preocupação seja a seguinte: se a verdade é uma coisa efectivamente última. Jamais podemos saber se a alcançámos de facto (razão esta que, julgo, não estará longe da que levou Pôncio Pilatos a fazer a pergunta, em João 18,38). Mas, ainda que resida aqui uma preocupação, esta nada tem a ver com a verdade.

A verdade é uma propriedade que algumas proposições possuem e outras não. Pode ser difícil determinar em que campo cai uma dada proposição, mas até aqui podemos ir. A proposição de que Wittgenstein era judeu é verdadeira se Wittgestein era judeu e falsa se Wittgenstein não era judeu. A proposição de que Frege era católico é verdadeira se Frege era católico e falsa se Frege não era católico. Alguns filósofos, ditos “deflacionistas”, defendem que nisto se esgota tudo o que há a dizer sobre a verdade. São os filósofos que consideram que a verdade não é uma propriedade   muito interessante. Eu não estou de acordo, embora todos possamos concordar que, mesmo que o acabámos de afirmar não seja tudo o que há a dizer da verdade, é pelo menos parte do que há a dizer sobre a verdade.

Em certo sentido, esta observação – que, em geral, a proposição de que as coisas são desta ou daquela maneira é verdadeira se, e somente se, as coisas são dessa ou daquela maneira  já encerra a sugestão de que o facto de que uma proposição ser ou não verdadeira depende do modo como as coisas são no mundo. Por exemplo, a proposição de que Russell era alemão é ou não verdadeira depende de…Russell ser ou não alemão, e esta questão diz respeito ao modo como as coisas são “lá fora”.

Posto isto,  como podemos saber se alcançámos a verdade? A maneira óbvia de interpretar a questão é perguntar como podemos saber se, por exemplo, Wittgestein era judeu. Todavia, pelo que acabámos de expor, a questão de saber se é verdade que Wittgestein era judeu é simplesmente a questão de saber se Wittgenstein era judeu. Uma vez aqui chegados, avizinha-se um enorme problema: o problema do cepticismo, que põe em questão se se pode saber o que quer que seja. No entanto, esta questão já não é sobre a verdade – é, em bom rigor, uma questão sobre o conhecimento.

 Alexander George, Que diria Sócrates? 2007, Gradiva, Lx 2008, pp35,36

quarta-feira, outubro 16, 2024

Real ou aparente?

 



George Bishop olhou atentamente para a tigela de laranjas à sua frente e depois pensou no ar. Ele começou fazendo uma distinção óbvia entre as características das laranjas que são meras aparências e as propriedades que elas realmente possuem. A cor, por exemplo, é uma mera aparência: sabemos que os daltônicos, ou animais com fisiologias diferentes, veem algo muito diferente da experiência humana normal do ‘laranja’. Os sabores e o cheiro também são meras aparências, pois também variam de acordo com quem ou o que está percebendo a fruta, enquanto a fruta em si permanece a mesma. Mas quando ele começou a eliminar as “meras aparências” das frutas, ele se viu abandonado. com muito pouco. Ele poderia ao menos falar sobre o tamanho e a forma reais dos frutos, quando essas características parecem depender de como seus sentidos de visão e tato os percebem? Para imaginar verdadeiramente a fruta em si, independente das meras aparências da perceção sensorial, ele ficou com a vaga ideia de algo, não sabia o quê. Então, qual é o verdadeiro fruto: esse 'algo' diáfano ou a coleção de meras aparências, afinal de contas.

The Principles of Human Knowledge, de George Berkeley (1710).

Não é preciso muita reflexão para abrir a distinção entre aparências e realidade? Quando crianças, somos “realistas ingénuos”, presumindo que o mundo é exatamente como parece. À medida que crescemos, aprendemos a distinguir entre a forma como as coisas aparecem aos nossos sentidos e a forma como realmente são. Algumas delas – como a diferença entre coisas que são genuinamente pequenas e aquelas que estão meramente distantes – são tão óbvias que dificilmente são comentadas. Outras, como a forma como o sabor ou a cor de uma coisa varia de acordo com quem percebe, sabemos, embora na vida quotidiana o ignoremos ou esqueçamos.

À medida que desenvolvemos uma compreensão científica básica do mundo, provavelmente passamos a ver essa diferença em termos da estrutura atómica subjacente dos objetos e da estrutura atômica subjacente. maneira como eles aparecem para nós. Podemos estar vagamente conscientes de que esta própria estrutura atómica é explicada em termos de estrutura subatómica, mas não precisamos de nos preocupar com os detalhes da nossa melhor ciência atual. Tudo o que precisamos de saber é que a forma como as coisas aparecem é uma função da interação entre os nossos sentidos e a forma como elas realmente são. Tudo isto é pouco mais do que um senso comum maduro, mas é um senso comum que encobre alguns detalhes importantes.

A realidade foi distinguida das aparências, mas não temos uma ideia clara do que é esta realidade. Não tem problema, podemos pensar. A divisão intelectual do trabalho significa que deixámos esta tarefa para os cientistas. Não será verdade, porém, que os cientistas estão tão envolvidos no mundo das aparências como nós? Eles também estudam o que é apresentado aos nossos cinco sentidos. O facto de possuírem instrumentos que lhes permitem examinar o que não é visível a olho nu é uma pista falsa. Quando olho através de um telescópio ou microscópio, fico tão preso ao mundo das aparências quanto quando vejo sem ajuda. Os cientistas não olham para além do mundo das aparências; estão apenas a olhar para esse mundo mais de perto do que normalmente fazemos. Este é um problema filosófico e não científico. Parecemos compreender a diferença entre o mundo das aparências e o mundo tal como ele é, mas parece impossível ir além das aparências e ver este mundo “real”. Quando entendemos que a lua está longe, não é pequena, ou que o bastão na água não está dobrado, não estamos indo além das aparências, estamos apenas aprendendo como algumas aparências são mais enganosas que outras. Isso nos deixa com um dilema. Continuamos comprometidos com a ideia de um mundo além das aparências e aceitamos que não temos ideia do que é este mundo e nem conseguimos imaginar como poderemos conhecê-lo? Ou desistimos da ideia e aceitamos que o único mundo em que podemos viver e conhecer é, afinal, o mundo das aparências.

Julian Baggini, The pig that wants to be eaten.

 

quarta-feira, outubro 09, 2024

Adelaide


Este texto é escrito no gabinte do meu departamento de Ciências Sociais e Humanas. Daqui vê-se o mar embora a foto não mostre,  veem-se também outras coisas que não estão à nossa frente mas que se espraiam como ondas fortes no pensamento. A minha colega Adelaide senta-se aqui comigo, do outro lado da mesa onde escrevo. Ontem aqui esteve e antes de ontem e há uma semana e há um mês e mesmo nas férias, em Agosto, quando a Escola está meio silenciosa e os professores, na sua larga maioria, aquecem os pés ao Sol de Verão, a Adelaide vinha para o gabinete de Ciências Sociais e Humanas e sentava-se nesta mesa a trabalhar no computador. Há muitos anos que era parceira desta colega , nos tempos mortos, aqui, no gabinete, encetávamos e continuávamos conversas de muitos dias e horas. É verdade que no tempo as coisas ganham contornos mais definidos e é sem dúvida no tempo que também os laços afetivos mais fortes se constroem, com o tempo, testemunho e presença.

Hoje de manhã contaram-me que a Adelaide tinha sido levada da Escola de ambulância diretamente para o hospital onde tinha sido imediatamente operada, por causa de  um acidente cardio vascular grave. Hoje sinto  a falta da Adelaide, o seu lugar vazio do outro lado da mesa é uma presença dolorosa,  a sua voz, o seu arquear de sobrancelhas. Este texto é só para dizer isso, que contamos contigo Adelaide, para muitas voltas à Lua  e outras tantas ao Sol, aqui na Escola, no Departamento de Ciências Sociais e Humanas.

Helena Serrão

quarta-feira, outubro 02, 2024

A guerra: comércio letal



 


Raymond Departon, Chicago, 1968

Concluímos, portanto, que a guerra não pertence ao domínio das artes nem ao das ciências. Ela é mais precisamente parte da existência social do homem. A guerra é um conflito de grandes interesses, que é resolvido através do derramamento de sangue - que é a única maneira pela qual ela difere de outros conflitos. Em vez de compará-la a uma arte, deveríamos compará-la com maior precisão ao comércio, que também é um conflito de interesses e de atividades humanas e que está ainda mais próximo da política que, por sua vez, pode ser considerada uma espécie de comércio em maior escala. A política é, além do mais, o útero em que se desenvolve a guerra - onde os seus contornos já existem na sua forma rudimentar, como as características de criaturas vivas em seus embriões.

A diferença essencial é que a guerra não é o uso da vontade orientada para um objeto inanimado, como no caso das artes mecânicas, ou para um corpo que seja animado, mas passivo e submisso, como é o caso da mente e das emoções humanas nas belas artes. Na guerra, a vontade é orientada para um corpo animado que reage. Deve ser óbvio que a codificação intelectual utilizada nas artes e nas ciências é inadequada a uma atividade destas. Ao mesmo tempo, é evidente que a luta contínua em busca de leis semelhantes às adequadas aos domínios da matéria inanimada estava fadada a levar a um erro após o outro. Apesar disto, eram exatamente as artes mecânicas que se esperava que a arte da guerra imitasse. Era impossível imitar as belas artes, uma vez que eles mesmas ainda não possuem suficientes leis e regras próprias. Até o momento, todas as tentativas de formular qualquer uma têm sido consideradas excessivamente limitadas e parciais, e têm sido constantemente solapadas e abolidas pelas correntes de opinião, pela emoção e pelos costumes.

(…) Parte do propósito deste livro é verificar se um conflito de forças vivas, como o que se desenvolve e é decidido na guerra, continua sujeito a leis gerais, e se estas leis podem proporcionar um guia útil para a ação. Uma coisa é evidente: esta questão, como qualquer outra que não ultrapasse a capacidade intelectual do homem, pode ser esclarecida através de uma mente investigadora, e a sua estrutura interna pode ser revelada até um certo ponto. Somente isto é suficiente para transformar em realidade o conceito da teoria.

 Quando um ataque de surpresa deixar um exército incapaz de empregar a sua força de uma maneira ordenada e racional, então o efeito da surpresa não poderá ser posto em dúvida. Quando a teoria houver determinado que um ataque envolvente leva a um êxito maior, embora menos certo, teremos que perguntar se o General que utilizou este envolvimento estava primordialmente interessado na magnitude do êxito. Se estivesse, escolheu a maneira correta de agir. Mas se ele o utilizou para tornar o êxito mais certo, baseando a sua ação, não tanto nas circunstâncias do momento, mas na natureza genérica dos ataques envolventes, como já ocorreu inúmeras vezes, então ele interpretou mal a natureza do meio que escolheu e cometeu um erro.

 A tarefa da análise e da prova crítica não é muito difícil em casos deste tipo. Fatalmente será fácil, se nos restringirmos aos propósitos e aos efeitos mais imediatos. Isto pode ser feito de uma maneira bastante arbitrária, se isolarmos a questão do seu cenário e a estudarmos somente sob essas condições.

 Mas na guerra, como na vida de uma maneira geral, todas as partes de um todo estão interligadas e, assim, os efeitos produzidos, por menores que sejam as suas causas, devem influenciar todas as operações militares subsequentes e modificar de algum modo o resultado final, por menor que seja esta modificação. Da mesma maneira, todo meio deve influenciar até mesmo o propósito final.

 Podemos continuar investigando os efeitos produzidos por uma causa até onde isto parecer valer a pena. Da mesma maneira, um meio não deve ser avaliado simplesmente em relação ao seu fim imediato: aquele fim deve ser avaliado como um meio para atingir o próximo e mais elevado e podemos, assim, seguir uma cadeia de propósitos sequenciais até chegarmos a um que não exija qualquer justificação, porque a sua necessidade é evidente por si mesma. Em muitos casos, principalmente naqueles que envolvem ações de vulto e decisivas, a análise deve ser estendida até o propósito final, que é obter a paz.

Da guerra, CARL VON CLAUSEWITZ,

Tradução do inglês Carlos Nascimento

quarta-feira, setembro 18, 2024

O ensino das humanidades e das artes é crucial para o desenvolvimento da relação com os outros.


 Ruth Orkin

“Os cidadãos não se relacionam devidamente com o mundo complexo que os rodeia apenas mediante o conhecimento factual e a lógica. A terceira competência do cidadão, estreitamente relacionada com as primeiras duas, consiste naquilo a que podemos chamar “imaginação narrativa”. Isto significa a capacidade de pensar como será estar na situação de outras pessoas diferentes de mim, de ser um leitor inteligente da história dessa pessoa e de compreender as emoções e os desejos e anseios de alguém que está noutra situação.

O desenvolvimento da compaixão foi parte fundamental do melhor das ideias modernas acerca da educação democrática, quer nas nações ocidentais quer nas não ocidentais.

Grande parte desse desenvolvimento deu-se na família, mas as escolas, e mesmo as instituições do ensino superior, desempenharam um papel significativo. Para o desempenharem perfeitamente, devem dar, no currículo, lugar de destaque às humanidades e às artes, cultivando um tipo de educação participativa que ative e refine a capacidade de ver o mundo através dos olhos de outra pessoa.

As crianças, como já dissemos, nasceram com uma capacidade rudimentar para a compaixão e preocupação com os outros. As suas primeiras experiências, todavia, são usualmente dominadas por um poderoso narcisismo, enquanto a ansiedade relacionada com a alimentação e o bem-estar continua desligada de qualquer perceção segura da realidade dos outros. Aprender a ver outro ser humano não como uma coisa, mas como uma pessoa integral, não é um acontecimento automático, mas uma conquista que requer a superação de muitos obstáculos, sendo o primeiro a absoluta incapacidade de distinguir entre mim e os outros. Bastante cedo na habitual experiência do bebé, esta distinção começa de forma gradual a tornar-se evidente, à medida que os bebés percebem pela coordenação de sensações tácteis e visuais o facto de algumas das coisas que veem serem parte dos seus próprios corpos e outras não. Mas uma criança pode percecionar que os seus pais não são parte dela própria, sem ter por isso noção de que possuem um mundo interior de pensamento e sentimento, e sem reconhecer que este mundo interior faz exigências à própria conduta da criança. É fácil para o narcisismo assumir o controlo nesta fase, considerando os outros meros instrumentos dos desejos e sentimentos da criança.

A capacidade para a preocupação genuína com os outros tem várias precondições. Uma, sublinhada por Rousseau, prende-se com o grau de competência prática: uma criança que saiba como fazer as coisas sozinha não precisa de tornar os outros seus escravos, a maturação física geralmente liberta as crianças da total dependência narcísica dos outros.

Uma segunda precondição, que destaquei quando falei na repugnância e na vergonha, consiste no reconhecimento de que o controlo total não é possível nem benéfico, que o mundo é um lugar em que todos temos fraquezas e necessidade de encontrar maneiras de nos apoiarmos uns aos outros. Este reconhecimento envolve a capacidade de ver o mundo como um lugar onde não estamos sozinhos - um lugar onde as outras pessoas têm as suas próprias vidas e necessidades e direitos que lhes permitem procurar satisfazer essas necessidades.

Mas a minha segunda precondição represente uma conquista complexa. Como chegaria alguém a ver o mundo desta forma, após tê-lo visto como um lugar em que os outros vultos circulam cuidando das suas próprias necessidades?

Parte da resposta a esta questão está sem dúvida na nossa estrutura inata. A interação natural de sorrisos entre bebé e pais revela uma disposição para reconhecer a humanidade nos outros, e depressa os bebés se deleitam nesses reconhecimentos. Outra parte da resposta,

contudo, reside no jogo, que fornece uma terceira precondição indispensável para a preocupação: a capacidade de imaginar o que poderá ser a experiência de outra pessoa.

(…) Como é que os adultos mantêm e desenvolvem a sua aptidão para o jogo depois de deixarem para trás o mundo das brincadeiras infantis? Winnicott defendeu que o papel-chave é desempenhado pelas artes. A firmava que a primeira função das artes em todas as culturas humanas é a de preservar e reforçar a cultura do “espaço de jogo” e considerou o papel das artes na vida humana o de, acima de tudo, alimentar e ampliar a capacidade para a empatia. Na resposta sofisticada a uma obra de arte complexa, via o prolongamento do prazer do bebé nos jogos e no role-playing.

Martha C. Nussbaum, Sem fins lucrativos, Lx, Edições 70, 2019, p.144 a 152

quinta-feira, agosto 08, 2024

Natureza comum?


Ruth Orkin, Comic Book Readers, West Village, NYC, 1947


“Se a inteligência nos é comum, também a razão, de acordo com a qual somos racionais, nos é comum. Se assim é, a razão que ordena o que devemos ou não fazer também nos é comum. Se assim é, também a lei nos é comum. Se assim é, somos cidadãos. Se assim é, pertencemos a uma mesma comunidade cívica. Se assim é, o cosmos é como uma cidade. Pois a que outra comunidade cívica comum alguém poderá dizer que toda a espécie humana pertence? É daqui, desta cidade comum, que provém a nossa própria inteligência, bem como a nossa razão e lei. Ou de onde provém então? Pois, assim como a parcela de terra que há em mim me foi atribuída a partir de alguma terra, e a água a partir de outro elemento, e o ar a partir de alguma fonte específica (pois nada vem do nada, tal como nada volta para o que não existe), assim também a nossa inteligência vem de algum lugar.”

Marco Aurélio, Meditações, Lx, 2023, Penguin Randon House, p. 41

Tradução: Rui Carlos Fonseca

Comentário: O texto é belíssimo, relaciona necessariamente a cidade e o cosmos, as leis civis e as leis naturais, a natureza, a moral e a política, algo que depois do renascimento foi definitivamente separado, a razão e a inteligência são comuns no sentido cartesiano, de todos os homens as possuírem, nesse aspecto o que é comum é termos ou comungarmos de uma mesma natureza a questão é a de que a unidade da natureza está perdida uma vez que a humanidade se afastou dessa comunhão essencial reinvindicando uma natureza humana que não está na mesma ordem da natureza natural, essa separação faz sucumbir este vislumbre unitário de Marco Aurélio.

Helena Serrão

terça-feira, julho 16, 2024

Crónicas da escola.



Foto Dorothea Lange, EUA, (1895–1965)

 Nos jornais em tom de notícia de última hora, os rankings das escolas deste ano.  Assim sai o título, de facto dia 12 de julho, a data deste acontecimento, as provas de exame do secundário já tinham sido corrigidas e esperavam-se os resultados na próxima segunda feira. O comum dos mortais pensaria, como eu pensei, que os jornais estão a publicar, em primeira mão, os resultados dos exames deste ano. Faria sentido apesar de ser estranho que tenham acedido aos resultados antes das próprias escolas, mas no seguimento cronológico dos acontecimentos, poderíamos pensar que sim, eram os resultados desse ano. Engano! São os resultados do ano passado, que se publicam numa altura em que está no ar a expectativa acerca dos resultados deste ano; a baralhação é o trunfo destas notícias, querem fazer-nos pensar que hierarquia das escolas corresponde a este ano, e sendo agora altura de matrículas, segue-se uma equação simples; os pais quererão inscrever os seus filhos e educandos numa boa escola, isto é, numa escola bem classificada do ranking e as melhores são os colégios privados...vai já um telefonema para marcar uma vaga...isto é, claro! para quem tem dinheiro para pagar, se não há dinheiro, não há alternativa, têm que ficar na escola Pública. Conclusão: Os rankings, pelo momento escolhido, para a sua publicação, fazem uma descarada publicidade ao Ensino Privado e segunda conclusão, vinculam a ideia de que os ricos têm melhor educação que os pobres. Os rankings ajudam a tornar visível o fosso social entre ricos e pobres, os ricos têm acesso às melhores escolas e os pobres não podem escolher, têm que ficar com o que resta. É um facto. A educação de qualidade paga-se, pelo seguro, não arrisque, pague, será melhor servido.

Para começar, melhores classificações de exames não são os únicos indicadores de melhor educação, são um indicador, há outros. A escola pública deve pensar com os rankings e aprender com alguns aspetos que funcionam melhor nos colégios privados.

Como professora da escola pública este ano tive problemas com um aluno que me mandou para aqueles sítios que me envergonho de dizer, o aluno continuou a ser meu aluno, não pediu desculpa, continuou a insultar á boca pequena, para o ar, fiz queixas e nada aconteceu, entretanto este aluno já tinha ameaçado outros professores e estragado material da escola com murros e pontapés, continua sem que nada lhe aconteça. A liberdade da escola pública, e o ensino para a liberdade, que é, sem dúvida algo que deve ser preservado, tem, nestes exemplos o seu contraditório. Uma liberdade efetiva não permite nunca a violação de direitos essenciais, não pode haver liberdade sem a defesa dos direitos de todos os membros da comunidade escolar, considero que os meus direitos não foram defendidos pela instituição e que se dá maus exemplos de liberdade quando se tomam estas atitudes institucionais. Aqui o colégio privado está melhor, o aluno que insulta um professor tem um processo disciplinar e é expulso da escola. Um dos problemas da escola pública é, parece-me, o problema de não sancionar maus comportamentos e confundir liberdade com direito a cada um fazer o que quiser, não cuidando assim da educação, pois dissemina maus exemplos, nem do professor porque não defende os seus direitos, nem do aluno porque lhe permite comportamentos abusivos. Enquanto este tipo de actuação não mudar, continuaremos a ter falta de professores, pois não é apenas o salário que desmotiva, é sobretudo este chão armadilhado que se dá como tarefa ao professor, esta falta de soluções para preservar os seus direitos, sem a preservação integral e inequívoca dos direitos dos professores, poucos serão aqueles que querem abraçar esta profissão e muito pouco se poderá melhorar no ensino.

Helena Serrão


quinta-feira, maio 23, 2024

Robert Nozick: Os mais favorecidos têm direito a queixar-se no sistema de justiça proposto por Rawls.


Ruth Orkin,  GreenwichVillage, Nova Iorque, 1949

Rawls dedica muita atenção a explicar por que os menos favorecidos não devem queixar-se de receber menos. A sua explicação, em termos simples, é que porque a desigualdade age em seu benefício, o indivíduo menos favorecido não deve queixar-se dela: ele recebe mais no sistema desigual do que obteria num sistema igual. (Embora pudesse receber ainda mais num sistema que colocasse alguém mais abaixo dele). Rawls, porém, discute a questão se os mais favorecidos acharão ou não, ou deverão achar, os termos satisfatórios (…) O que Rawls imagina que se diz aos mais favorecidos não demonstra que estes não têm motivos para se queixarem. A condição de que o bem-estar de todos depende da cooperação social, sem a qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, poderia também ser dito aos menos dotados por alguém que propusesse qualquer outro princípio, incluindo o de maximizar a posição dos mais bem dotados. Analogamente, a respeito do facto, só podemos pedir a cooperação voluntária de alguém se os termos do esquema forem razoáveis. A questão é: Que termos seriam razoáveis? (…) Assim quando Rawls continua: “ O princípio da diferença, então, parece ser uma base justa sobre a qual os mais bem dotados, ou mais afortunados nas suas circunstâncias sociais, poderiam esperar que os demais colaborassem com eles, quando o arranjo viável for condição necessária para o bem de todos”, a presença do termo “então” nesse período é enigmática. Uma vez que as orações que o precedem são neutras entre a sua proposta e outra qualquer, a conclusão de que o princípio da diferença oferece uma base justa para a cooperação não pode seguir-se do que a precede neste trecho. Rawls repete que os termos parecem razoáveis, o que seria certamente uma resposta pouco convincente para aqueles para quem eles não são razoáveis. Rawls não demonstrou que o indivíduo mais favorecido A, não tem motivos para se queixar ao ser obrigado a ter menos, para que outro, B, possa ter mais do que teria em outra situação qualquer. E não pode demonstrar isso uma vez que A, de facto, tem motivo de queixa. Ou não tem?

Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia (1974), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1991), p.213, 214

 

quinta-feira, maio 16, 2024

Rawls: Como pensar uma sociedade mais justa.


Luís Pavão, Taberna da Rua de S. Mamede, 1981

"O político visa à próxima eleição, o estadista, à próxima geração. É papel do estudante de filosofia visar às condições permanentes e aos reais interesses de uma sociedade democrática justa e boa”, John Rawls

O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) costumava dizer que a última coisa de que gostaria era de se tornar assunto de teses académicas. Não podia evitá-lo, porém. O que a frase acima indica é que ele preferia que seu pensamento servisse de inspiração para que outros implementassem, ou levassem adiante, as suas ideias, em vez de se limitar a alimentar teses e doutores. Dedicou boa parte da sua vida académica, se não toda ela, à elaboração de uma teoria da justiça, à qual deu o nome de “Justiça como equidade” (Justice as fairness). A sua teoria foi apresentada de modo mais consistente, em 1971, em Uma Teoria da Justiça, e a partir daí ocupou-se em responder às críticas e corrigir ou alterar alguns aspetos da sua teoria. O conjunto de sua produção converge, de maneira impressionante, para o tema central: como tornar as sociedades mais justas? (...)

Rawls não se limita a descrever uma situação de injustiça social; aliás, raramente o faz. Parte do pressuposto de que a desigualdade é inerente à condição do homem em sociedade, e que o homem é intrinsecamente auto-interessado, um “egoísta racional”. Ainda assim, julga, ele pode superar essa condição ao associar-se a outros para estabelecer os princípios da vida em comum. Para que a escolha dos princípios não seja distorcida por esses interesses, tal escolha efetua-se por trás de um “véu de ignorância”, os agentes ignoram a sua posição atual bem como suas chances futuras na sociedade, tanto as suas como as dos outros. A essa situação chama de “posição original”.

Uma vez escolhidos os princípios para essa sociedade, que são, argumenta, o “princípio da liberdade igual para todos” e o “princípio da diferença”, caberá a cada sociedade, internamente , deliberar sobre a forma de pôr em prática esses princípios

A igualdade de oportunidades só pode ser efetiva se todos se beneficiarem das mesmas condições formais de educação, saúde e alimentação, dentre outros bens primários. Caso todos possuam acesso pelo menos aos bens básicos, a condição inicial será justa. Isso não significa que não haja mais desigualdade, mas essa desigualdade será pelo menos aceitável para os que se encontram na base da pirâmide social; este é, basicamente, o que é enunciado pelo princípio da diferença. Como diz Rawls, a “igualdade de oportunidades é assegurada por um certo conjunto de instituições que asseguram igualmente boa educação e chances de cultura para todos e que mantêm aberta a competição para posições com base em qualidades que podem ser relacionadas com a performance”.

A teoria da justiça como equidade não constitui um igualitarismo rasteiro. Trata-se de mexer na distribuição até ao ponto em que se possa fazê-lo sem afetar a renda da sociedade como um todo, o que é conhecido como o princípio "maximin". Este defende que se pode elevar a renda e as condições de vida dos que têm menos, ao mesmo tempo em que se taxa progressivamente (ou por meio de um imposto de consumo) a renda dos que têm mais, até ao ponto em que uma maior alteração afetaria negativamente as condições económicas da sociedade em geral. Em linguagem mais simples, quer dizer que a desigualdade se justifica se e somente se, aqueles que estão na parte mais baixa da pirâmide são mais beneficiados pela presente repartição (desigual) de bens e oportunidades do que seriam se o sistema fosse mais igualitário.

Luiz Paulo Rouanet



quarta-feira, maio 08, 2024

Problemas do argumento cosmológico


No argumento cosmológico o cerne do problema é que, se a resposta à pergunta “O que causou o universo?” é X (Deus, por exemplo, ou o Big Bang), é sempre possível dizer-se “Sim, mas o que causou X?”. E se a resposta a isso for Y, poderá perguntar-se ainda “O que causou Y?”. A única maneira de fazer que a pergunta pare de se referir interminavelmente a uma anterioridade é insistir que X (ou Y, ou Z) é de um género tão radicalmente diferente, que a pergunta nem sequer pode ser feita. E isso exige que se atribuam a X algumas propriedades bem estranhas. Quem tiver relutância em aceitar esta consequência talvez se sinta mais contente ao aceitar a implicação de se estender indefinidamente a cadeia causal, designadamente a de que o universo não tem começo. Ou poderá adotar o ponto de vista de Bertrand Russell, para quem o universo é em definitivo ininteligível, um facto bruto acerca do qual não podemos falar ou debater com coerência. Uma resposta insatisfatória, mas não pior do que outras também disponíveis para este problema tão intratável.»

Ben Dupré (2011), 50 Ideias de Filosofia que Precisa Mesmo de Saber, Alfragide, Publicações Dom Quixote, p. 158

O Universo tal como até agora a ciência e a tecnologia nos mostra, com algum grau de certeza, é um conjunto de galáxias com estrelas e planetas e que, em número de seres existentes, tende para o infinito. A sua existência infinita ou não teve um começo ou não teve começo algum como pensavam os gregos; uma matéria eterna. Pode ser uma criação divina? As evidências de planetas e estrelas onde parece só existir  matéria sem vida em vários estados, aponta para a possibilidade de um acaso, e não para um Deus criador inteligente, senão para quê tanta matéria inerte? Parece não ter nenhum propósito do ponto de vista da nossa inteligência. Um Deus entediado que, como um fazedor de coisas, não se cansa de as fazer sem fim também custa a acreditar dado que há um padrão nas coisas existentes, que se coaduna mais com leis de causa efeito produzidas pela própria natureza da matéria, sem excluir o acaso. A evidência deste Universo que conhecemos não se coaduna com a ideia de um Cosmos, bem organizado e com propósito, nem com a ideia de um Deus teísta o que excluíria todos os argumentos para provar a existência do Deus teísta.

quarta-feira, abril 24, 2024

Arte e falsificação: Será uma falsificação obra de arte?


'Voltando para Casa', supostamente de Gertrude Abercombrie, foi vendida em leilão por US$ 93,750 no ano passado. A pintura está a ser investigada pelo FBI por suspeita de ser uma falsificação.


A definição formalista de Bell (1), que é uma definição essencialmente estética, permite claramente classificar como arte as falsificações. Se basta que uma obra tenha forma significante para ser arte e se, como escreve Bell, a forma significante na pintura consiste em «linhas e cores combinadas de um modo particular, ou em certas formas e relações de formas», então uma cópia perfeita – seja uma falsificação ou não – de um objecto com forma significante terá também forma significante, pelo que será também uma obra de arte. Neste sentido, é irrelevante determinar qual a história da produção das obras de arte ou obter informação sobre quaisquer outras propriedades quando há arte!  Daí que, «para apreciarmos uma obra de arte, a única coisa que temos de trazer connosco é um sentido de forma e de cor e um conhecimento do espaço tridimensional», diz Bell . Assim, não precisamos de qualquer bagagem extra, a não ser sensibilidade estética e inteligência, para determinar se um dado objecto é ou não uma obra de arte, pois temos diante de nós tudo o que realmente conta. O que nos importa, pergunta Bell, «se as formas que nos emocionam foram criadas anteontem em Paris ou há cinquenta séculos na Babilónia?»  Talvez isso não seja irrelevante para avaliar os méritos artísticos de uma dada obra de arte, mas é irrelevante para decidir se estamos ou não diante de uma obra de arte. As coisas já são menos claras quando pensamos na definição institucional. As falsificações parecem satisfazer todas as condições indicadas pela definição institucional de Dickie: ser um artefacto, em virtude de cujas características é proposto por alguém que age em nome do mundo da arte como candidato a apreciação. No entanto, foi o próprio Dickie que, em Art and the Aesthetic (2), argumentou que as falsificações não são arte por falta de originalidade, uma vez que a obra genuína teria, como diz Davies, «esgotado o uso da patente da obra» (3). Este requisito soa um tanto ad hoc, dado que a definição institucional não parece exigir tal coisa. Daí que Dickie tenha posteriormente mudado de opinião:

“Seguindo o exemplo de Danto, em Art and the Aesthetic ,concluí que as falsificações não são obras de arte. Penso agora que foi uma conclusão errada. [...] Claro que ainda se pode dar o caso de as falsificações não serem obras de arte por algum motivo. Mas não vejo razão para que tais obras não possam satisfazer todos os requisitos para serem obras de arte no sentido classificatório: as falsificações são obras de arte sobre cujo criador estamos ou temos estado enganados; as cópias são obras de arte sem imaginação ou completamente parasitárias. (4)

Ainda assim, independentemente de a posição inicial de Dickie estar relacionada com a questão da originalidade, poderia haver dúvidas quanto à satisfação de algum dos requisitos indicados na sua definição. Um desses requisitos é que um objecto só pode ser arte se alguém do mundo da arte o propuser como candidato a apreciação. Dickie esclarece que fazem parte do mundo da arte os próprios artistas, os membros do público e os apresentadores, que são os intermediários entre o artista e o público. Mas é aqui que surgem as dúvidas: se dissermos que uma cópia ou uma falsificação são arte porque foram propostas como candidatas a apreciação pelos próprios artistas que as produziram, então estaremos perante um círculo. O que justifica que os seus autores sejam chamados artistas? Não é esclarecedor dizer que basta que alguém se considere artista para o ser, até porque Dickie sublinha que uma característica de todos os artistas é a consciência de que aquilo que está a ser criado para apresentação é arte. Mas é, no mínimo, duvidoso que o falsário tenha sempre a consciência de que aquilo que está a apresentar seja mesmo uma obra de arte, caso contrário talvez não precisasse de esconder a verdadeira autoria.


(1) BELL,Clive. Arte. Traduzido por Rita Canas Mendes. Lisboa: Texto e Grafia, 2009.

(2) DICKIE, George. Art and the Aesthetic. Ithaca: Cornell University Press, 1974.

(3) DAVIES, Stephen. Definitions of Art. Ithaca: Cornell University Press, 1981, 

(4) DICKIE, George. The Art Circle. Nova Iorque: Haven, 1984.


Aires Almeida,"Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações"
 in Quando Há Arte! Ensaios de Homenagem a Maria do Carmo d’Orey,  Organizadores: Vítor Guerreiro, Carlos João Correia e Vítor Moura, 2023, Bookbuilders / Letras Errantes, p.93,94

quarta-feira, abril 17, 2024

A palavra "jogo" e a palavra "arte": sabemos identificar os objetos pertencentes à classe do conceito mas não sabemos identificar uma característica comum a todos os objetos.

 


Fotografia, Helen Bartlett, Londres

E é verdade. – Em vez de mencionar algo que é comum a tudo o que chamamos de linguagem, eu afirmo que essas manifestações nada têm em comum, ainda que para todas empreguemos a mesma palavra, – mas estão mutuamente aparentadas de muitas formas diferentes. E é devido a esse parentesco, ou a esses parentescos, que nós chamamos a todas essas manifestações de “linguagem”. Vou tentar explicar isto.

 Considera, por exemplo, os processos a que chamamos de “jogos”. Quero dizer, jogos de tabuleiro, de carta, com bola, de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? – Não respondas: “Tem que haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam ‘jogos’” – mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum, – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que toos têm em comum, mas parecenças, parentescos, e em grande quantidade. Como foi dito: não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com os seus múltiplos parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas correspondências com a primeira classe, mas desaparecem muitos traços comuns, outros aparecem. Se consideramos a seguir os jogos de bola, então muitas coisas em comum ficam preservadas, mas muitas se perdem. – São todos eles ‘divertidos’? Compara o xadrez com o jogo da cabra cega. Ou há sempre perder e ganhar, ou uma competição entre os jogadores? Pensa nos jogos de paciência. Nos jogos de bola há ganhar e perder; mas quando uma criança atira a bola à parede e depois a apanha, este aspeto desaparece. Olha para o papel que desempenham a habilidade e a sorte. O quão diferente que é a habilidade no jogo de xadrez e no jogo de ténis. Pensa agora nos jogos de andar à roda: Tem-se aqui divertimento, mas desaparecem muitos dos outros traços característicos! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver surgir e desaparecer as suas parecenças.

E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma complicada rede de parecenças que se sobrepõem e se cruzam mutuamente. Parecenças de conjunto e de pormenor. Eu não poderia caracterizar melhor essas parecenças do que pela expressão “parecenças de família”;39 porque as diversas parecenças entre os membros de uma família: altura, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento etc., etc. sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira – E eu direi: os ‘jogos’ constituem uma família.

(…) Como é que explicaríamos então a uma pessoa o que é um jogo? Penso que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: “A isto, e a coisas parecidas chama-se um ‘jogo’”.

Investigações filosóficas (1953), Ludwig Wittgenstein, Lx, 2002, Fundação Calouste Gulbenkian, p.227,228,229

(Este texto resulta da comparação entre a obra mencionada e a edição brasileira, tradução e notas João José R. L. de Almeida)

Esta reflexão poderia aplicar-se a muitas palavras como "Arte"cujo conceito é vago e ilimitado, podendo até dizer-se que por não podermos selecionar características comuns a todas as manifestações artísticas, Arte seria uma palavra sem conceito, como jogo ou beleza, podemos descrever várias manifestações artísticas talvez porque não tendo todas a mesma característica, têm contudo uma parecença de família. Como a beleza, diz algo que nos é familiar, uma experiência que podemos descrever, mas que não podemos definir.

quinta-feira, abril 11, 2024

A semelhança de família

 


Pintura de Cecily Brown’s “No You for Me” (2013)


Um tema perene da filosofia ocidental desde que Platão tem sido a busca por definições. Os diálogos socráticos normalmente fazem uma pergunta – o que é justiça, o que é conhecimento, o que é beleza – e prosseguem mostrando, através de uma série de perguntas e respostas, que os interlocutores (apesar da confiança no seu conhecimento) não têm, de facto, uma compreensão clara dos conceitos envolvidos.

A suposição tácita é que o verdadeiro conhecimento de algo depende da capacidade para o definir, e é isso que aqueles que debatem com Sócrates (o porta-voz) não conseguem fazer. Mas isto apresenta-nos um paradoxo, aqueles que não conseguem fornecer uma definição de um determinado conceito são geralmente capazes de reconhecer o que não é, o que certamente exige que eles saibam, em algum nível, o que é. O conceito de arte confronta-nos exatamente com esse caso. Parece que sabemos o que é, mas lutamos para definir as condições necessárias e suficientes que têm de ocorrer para que algo conte como obra de arte.

Na nossa perplexidade, talvez seja natural perguntar se a tarefa de definição não é em si mal concebida: uma caça ao ganso selvagem cujo objetivo é identificar algo que se recusa veementemente a cooperar.

Uma saída para esse labirinto é fornecida pela noção de “semelhança de família” de Wittgenstein, que ele explica no seu livro publicado postumamente “Investigações Filosóficas”. Pegue-se na palavra “jogo”. Todos nós temos uma ideia clara do que são jogos: podemos dar exemplos, fazer comparações entre diferentes jogos, arbitrar casos limites, e assim por diante. Mas surgem problemas quando tentamos aprofundar e procurar algum significado ou definição essencial que englobe todas as instâncias. Pois não existe esse denominador comum: há muitas coisas que os jogos têm em comum, mas não há uma característica que todos compartilhem. Para abreviar, não há profundidade oculta ou significado essencial: a nossa compreensão da palavra é nem mais nem menos do que a nossa capacidade de usá-la adequadamente numa ampla gama de contextos.

Se supusermos que “arte”, assim como “jogo”, é uma palavra com uma “semelhança de família”, a maior parte de nossos as dificuldades evaporam. As obras de arte têm muitas coisas em comum com outras obras de arte: podem expressar as emoções interiores de um artista; podem destilar a essência da natureza; podem comover-nos, assustar-nos ou chocar-nos. Mas se olharmos para alguma característica que todas possuem, procuraremos em vão; qualquer tentativa de definir arte – definir um termo que é essencialmente fluido e dinâmico no seu uso – é mal concebido e fadado ao fracasso.

Tradução Helena Serrão

Ben Dupré, 50 philosophy ideas, London, 2007,Quercus, p.146,147

quarta-feira, março 27, 2024

O medo da liberdade

 




Eduardo Gageiro, 25 de Abril 1974

“À medida que a criança cresce e corta os laços primários, vai desenvolvendo uma busca de liberdade e independência. Mas o fim desta busca só pode ser entendido se entendermos o carácter dialético deste processo de individuação crescente.

Este processo tem dois aspetos: um é o de que a criança se torna mais forte dos pontos de vista físico, emocional e mental. (…) Os limites do crescimento da individuação e do eu são estabelecidos, em parte, por condições individuais, mas essencialmente por condições sociais. Isto porque, embora as diferenças entre os indivíduos, a este respeito, pareçam ser grandes, cada sociedade é caracterizada por um certo nível de individuação que o indivíduo não pode superar.

O outro aspeto do processo de individuação é a solidão crescente. Os laços primários oferecem segurança e unidade básica com o mundo que nos é exterior. À medida que a criança emerge deste mundo, torna-se consciente de estar sozinha, de ser uma entidade separada de todas as outras. Esta separação de um mundo que, em comparação com a nossa própria existência individual, é esmagadoramente forte e poderoso, muitas vezes ameaçador e perigoso, cria um sentimento de impotência e ansiedade. Enquanto somos parte integral desse mundo, inconscientes das possibilidades e responsabilidades da ação individual, não há necessidade de o temer. Quando nos tornamos indivíduos, ficamos sozinhos e enfrentamos o mundo em todos os seus aspetos perigosos e esmagadores.

Surgem impulsos de renúncia à nossa individualidade, de superação do sentimento de solidão e de impotência, submergindo completamente no mundo exterior. Ora, estes impulsos e os novos laços que deles surgem não são idênticos aos laços primários que foram cortados no próprio processo de crescimento. Da mesma maneira que uma criança nunca pode regressar fisicamente ao útero da mãe, nunca pode inverter fisicamente o processo de individuação. Os esforços para o fazer adquirem necessariamente o carácter de submissão, em que a contradição básica entre a autoridade e a criança que se lhe submete nunca é eliminada. Conscientemente, a criança pode sentir-se segura e satisfeita, mas, inconscientemente, percebe que o preço a pagar é a renúncia à força e integridade do seu eu. Assim, o resultado da submissão é exatamente o oposto do que devia ser: a submissão aumenta a insegurança da criança e, ao mesmo tempo, gera hostilidade e rebeldia, que são mais assustadoras, porque se dirigem contra as mesmas pessoas relativamente às quais a criança permaneceu – ou se tornou – dependente.

(…) Também em termos filogenéticos, a história do homem pode ser caracterizada como um processo de crescente individuação e de crescente liberdade. O homem emerge do estádio pré-humano ao dar os primeiros paços na direção da libertação dos instintos coercivos. (…) De todos, o homem é o animal mais desamparado ao nascer. A sua adaptação à natureza baseia-se essencialmente no processo de aprendizagem e não na determinação instintiva. O instinto é uma categoria que diminui e até desaparece nas formas animais superiores, em especial no ser humano.

A existência humana começa quando a falta de fixação da ação pelos instintos supera um certo ponto; quando a adaptação à natureza perde o seu carácter coercivo, quando a maneira de agir já não é determinada por mecanismos herdados. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são inseparáveis."

Erich Fromm, O medo da liberdade, (1941), Lx, Edições 70, 2023, p.p 45 a 48.


A questão da liberdade como hoje a colocamos quando falamos no 25 de Abril, ganha protagonismo com a revolução francesa, "Liberté, Fraternité, Egalité" é a chave das novas Repúblicas, uma nova forma de entender os indivíduos e as sociedades, de entender o que interessa preservar ou conquistar. Aqui a Liberdade dá-se como um grito de revolta contra uma tirania política e social que impedia vários direitos, entre os quais o direito à liberdade de escolha política, religiosa, sexual, cultural, económica. Centra-se essa liberdade no direito que cada indivíduo tem de escolher, o poder do indivíduo inserido num coletivo, porque o poder é do coletivo, politicamente falando. A questão é de desviar a atenção deste pormenor, cada indivíduo é um poder, no sentido que pode escolher, mas as sociedades só mudam e os direitos só prevalecem se individualmente formos capazes de deixar as nossas singularidades e escolhermos um projeto coletivo, penso que hoje, em Portugal, estamos só centrados nas liberdades individuais e descurámos o coletivo, e só o coletivo, as sociedades e as políticas podem garantir esses direitos.  50 anos depois, o fervor da liberdade continua como uma ideia bonita e definitivamente enraizada no nosso imaginário mas, sem uma vivência efetiva. A possibilidade de escolha é angustiante, dá-nos mais paz uma autoridade que decida por nós, alguém em quem confiar enfim, voltar ao ventre materno. Ora, a democracia atual e o atual estado político nega-nos esse conforto, não há paizinhos protetores, nem úteros maternos onde fechar os olhos e deixar-se levar, a democracia exige vivência da liberdade e isso causa um medo imenso, a verdade é que não sabemos o que escolher, e não pensamos muito sobre isso, nem perdemos muito tempo, passa-se o mesmo com todos os problemas da participação, nas assembleias camarárias, nos grupos de café, em qualquer sítio onde se possa discutir a política, se tenha poder decisório de uma voz pública. O medo da liberdade não é só um sintoma psicológico de não querer crescer, pois esse faz parte das dores do crescimento, é sobretudo uma conjuntura social alienante que identifica liberdade com saída com amigos, correr e viajar, isto é com a fuga da intervenção e responsabilidade política. O medo da liberdade é proporcional ao nosso desdém pela política, como se pudesse ter havido liberdades sem um coletivo onde cada um se revia em todos, ou seja num espírito político. HS

quinta-feira, março 21, 2024

Filosofia

 



Construo o pensamento aos pedaços: cada
ideia que ponho em cima da mesa é uma parte do
que penso; e, ao ver como cada fragmento se
torna um todo, volto a parti-lo, para evitar
conclusões.


"A pura inscrição do amor", pág. 42 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018


Nuno Júdice 29 de abril de 1949/ 17 de março de 2024

sexta-feira, março 08, 2024

O imprevisto como um dos motores da ciência

 


Matt Black, Um fazendeiro revê os seus sistemas de rega, Georgia, EUA, 2017

Na ciência, (…) a novidade somente emerge com dificuldade (dificuldade que se manifesta através de uma resistência) contra um pano de fundo fornecido pelas expectativas. Inicialmente experimentamos somente o que é habitual e previsto, mesmo em circunstâncias nas quais mais tarde se observará uma anomalia. Contudo, uma maior familiaridade dá origem à consciência de uma anomalia ou permite relacionar o facto a algo que anteriormente não ocorreu conforme o previsto. Essa consciência da anomalia inaugura um período no qual as categorias conceptuais são adaptadas até que o que inicialmente era considerado anómalo se converta no previsto. Nesse momento completa-se a descoberta. Já insisti anteriormente sobre o fato de que esse processo (ou um muito semelhante) intervém na emergência de todas as novidades científicas fundamentais Gostaria agora de assinalar que, reconhecendo esse processo, podemos facilmente começar a perceber por é que a ciência normal — um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio tende a suprimi-las — pode, não obstante, ser tão eficaz a provocá-las.

No desenvolvimento de qualquer ciência, admite-se habitualmente que o primeiro paradigma explica com bastante sucesso a maior parte das observações e experiências facilmente acessíveis aos praticantes daquela ciência. Em consequência, um desenvolvimento posterior requer geralmente, a construção de um equipamento elaborado, o desenvolvimento de um vocabulário e técnicas esotéricas, além de um refinamento de conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do senso comum. Por um lado, essa profissionalização leva a uma imensa restrição da visão do cientista e a uma resistência considerável à mudança de paradigma. A ciência torna-se sempre mais rígida. Por outro lado, dentro das áreas para as quais o paradigma chama a atenção do grupo, a ciência normal conduz a uma informação detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia ser atingida de outra maneira. Além disso, esse detalhe e precisão da integração possuem um valor que transcende o seu interesse intrínseco, nem sempre muito grande. Sem os instrumentos especiais, construídos sobretudo para fins previamente estabelecidos, os resultados que conduzem às Mesmo quando os instrumentos especializados existem, a novidade normalmente emerge apenas para aquele que, sabendo com precisão o que deveria esperar, é capaz de reconhecer que algo está errado. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma. Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente de ocasiões para a mudança de paradigma. No processo normal de descoberta, até mesmo a mudança tem uma utilidade que será mais amplamente explorada no próximo capítulo. Ao assegurar que o paradigma não, será facilmente abandonado, a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem razão.

Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, (1962), S. Paulo, Editora Perspectivas,1998, p.90,91,92

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

Sobre não mentir

 



Foto: Kultur Tava,

Ora a primeira questão é se o homem, nos casos em que não se pode esquivar à resposta com sim ou não, terá a faculdade (o direito) de ser inverídico. A segunda questão é se ele não estará obrigado, numa certa declaração a que o força uma pressão injusta, a ser inverídico a fim de prevenir um crime que o ameaça a si ou a outrem. A veracidade nas declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação seja a quem for2 , por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se a falsificar, cometo em geral, mediante tal falsificação, que também se pode chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço, tanto quanto de mim depende, que as declarações não tenham em geral crédito algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força – o que é uma injustiça causada à humanidade em geral.

Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius] 3 . Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral. Mas a mentira bem intencionada pode também, por um acaso (casus), ser passível de penalidade, segundo as leis civis. Porém, o que apenas por acaso se subtrai à punição pode igualmente julgar-se como injustiça, segundo leis externas. Se, por exemplo, mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as consequências que daí possam surgir. Mas se te ativeres fortemente à verdade, a justiça pública nada em contrário pode contra ti, por mais imprevistas que sejam as consequências. É, pois, possível que, após teres honestamente respondido com um sim à pergunta do assassino sobre a presença em tua casa da pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído (embora sem teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir e levasse a cabo a sua ação, poderias com razão ser acusado como autor da sua morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o assassino, ao procurar em casa o seu inimigo, fosse preso pelos vizinhos que acorreram, e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois, mente, por mais bondosa que possa ser a sua disposição, deve responder pelas consequências, mesmo perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que essas consequências possam também ser; porque a veracidade é um dever que tem de se considerar como a base de todos os deveres a fundar num contrato e cuja lei, quando se lhe permite a mínima excepção, se toma vacilante e inútil. Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento sagrado da razão que ordena incondicionalmente e não é limitado por quaisquer conveniências.

Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade,

Tradução de Artur Morão

 

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Não há falta de normas

 


Diego-Herrera, Igreja destruída em Yasnohorodka perto de Kiev, March-2022,


A diferença entre o âmbito moral, jurídico e religioso

Porque falamos em “normas” para nos referimos à Moralidade, podemos confundir-nos com as normas jurídicas e religiosas. Um código de normas pode-se inscrever nesses três âmbitos. Nós podemos pensar: “Mas todas essas normas não são estabelecidas para que todos as sigam?” Ou ainda: “Não são todas as normas possíveis de transformação em relação ao contexto histórico e social?” Ou então: “Todas essas normas não buscam que todos os indivíduos vivam melhor em sociedade?”

Sim, as normas jurídicas e, algumas normas religiosas, possuem aspetos em comum com as normas morais, como, por exemplo, o aspeto prescritivo. Mas há distinções importantes. Vejamos algumas delas:

a) As normas morais têm o sentido de uma obrigação interna, ou seja, fundada na razão; as jurídicas de uma obrigação externa fundada nas leis; as religiosas têm o sentido de uma obrigação externa fundada na divindade, expressa por algum livro sagrado ou pelas autoridades religiosas;

b) As normas morais são estabelecidas pela consciência pessoal de cada indivíduo; as normas jurídicas são estabelecidas por organismos legislativos do Estado; as normas religiosas são estabelecidas pelos intérpretes da doutrina professada, tendo relação tanto com o livro sagrado (se houver para a determinada religião) quanto com a tradição;

c) As normas morais têm uma condição universalizável, ou seja, abrangem diversos aspetos da vida humana, por isso também não possuem um código formal. As normas jurídicas referem-se a questões específicas e geralmente, pela sua ligação com o Estado, afetam um território delimitado. As normas religiosas referem-se a princípios compartilhados por um grupo de pessoas, que não têm relação ao território, pois pessoas de países diferentes podem professar o mesmo credo. No entanto, as normas morais são independentes da expressão religiosa, sem que isso signifique que sejam opostas.

CORTINA, Adela; MARTINEZ, Emílio. Ética. Ediciones Akal. Espanha, 2001.