Giuseppe De Nittis, Mar revolto
4. Sendo assim, recebe, meu caro Teodoro – visto que para alcançar o que desejo te considero o único capaz de me auxiliar e sempre te admirei –, recebe, dizia eu, este relato onde te mostrarei em qual dos três grupos de homens está aquele que a ti se dirige, em que lugar me encontro e que tipo de auxílio reclamo de ti, com toda a segurança. Desde que li, quando aos dezanove anos frequentava a escola de retórica, o livro de Cícero que se intitula Hortênsio, inflamei-me de tal maneira pelo amor da filosofia que imediatamente me entreguei ao seu estudo. Porém, nem sequer me faltaram as névoas a perturbar a minha viagem e durante muito tempo, confesso, contemplei os astros que se afundavam no oceano e me conduziam para o erro. É que uma certa superstição pueril fazia-me perder todo o espírito crítico; quando ganhei mais coragem, afastei de mim aquele denso nevoeiro e convenci-me de que se deve acreditar mais nos que ensinam do que naqueles que mandam. Caí assim no meio de uns homens que veneram a luz que os olhos vêem como se fosse a realidade suprema e divina. Não concordava com eles, mas pensava que com aqueles véus escondiam algo de importante que me seria revelado quando, enfim, estivessem dispostos a levantá-los. Mas, após ter discutido com eles, abandonei-os e depois de ter atravessado este mar, os Académicos apoderaram-se durante muito tempo do leme da minha vida, no meio das ondas, em luta com todos os ventos. Seguidamente, acostei a estas terras onde aprendi a conhecer o norte em que devia depositar confiança. Compreendi muitas vezes, de facto, quer pelo nosso sacerdote, quer por algumas conversas que tive contigo, que não se deve de forma alguma conceber Deus como corpóreo, nem a alma, que é a realidade mais próxima de Deus. No entanto, confesso que os atractivos de uma esposa e das honras me retinham, não me deixando aproximar com a rapidez necessária do seio da filosofia; só na altura em que essas ambições fossem alcançadas é que me apressaria para aquela enseada, com as velas desfraldadas e à força de remos – o que acontece a poucas e felicíssimas pessoas – e aí repousaria. Foi então que li algumas obras de Platão, por quem, sei, nutres grande admiração: confrontando-as como pude com os que pela autoridade nos transmitem os mistérios divinos, entusiasmei-me de tal maneira que, se a consideração por alguns homens me não demovesse, quereria ter quebrado todas aquelas âncoras. Que é que me faltava senão uma tempestade – tida como desfavorável – que, porque me encontrava preso a coisas vãs, viesse em meu auxílio? Foi então que se apoderou de mim uma forte dor de peito e não tendo saúde para suportar o fardo de uma profissão que me levaria, talvez, navegando até às sereias, a tudo renunciei e conduzi a minha barca, agitada e fendida, para a tão desejada tranquilidade.
5. Agora já vês em que filosofia navego, como num porto. Mas é tão extenso e tão vasto este porto que, apesar de ser menos perigoso, não exclui por completo o erro. Por isso, não sei por que parte da terra, a única sem dúvida verdadeiramente feliz, me devo aproximar e alcançar. Que coisa de seguro consegui eu, de facto, se até hoje hesito e vacilo quanto ao problema da alma?
Santo Agostinho, Diálogo sobre a felicidade, Capítulo I, Parágrafos 4 e 5.
Tradução do original de Mário A. Santiago Carvalho, Edições 70, Lisboa 2014
Sem comentários:
Enviar um comentário