quarta-feira, novembro 30, 2016

terça-feira, novembro 29, 2016

quinta-feira, novembro 17, 2016

Estamos condenados a ser livres?

Fotografia: Robert Capa

(…)  o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra "responsabilidade" no sentido corriqueiro de "consciência (de) ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto", (...) pois os piores inconvenientes ou as piores ameaças que prometem atingir a minha pessoa só adquirem sentido pelo meu projeto; e elas aparecem sobre o fundo de compromisso que eu sou. Portanto, é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade. O que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia  deixar me afetar por isso, nem  revoltar-me, nem  resignar-me. Além disso, tudo aquilo que me acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano·I não há situação inumanas; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso a condutas mágicas que irei determinar o inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir total responsabilidade por ela. Mas, além disso, a situação é minha por ser a imagem da minha livre escolha de mim mesmo, e tudo quanto ela me apresenta é meu, nesse sentido de que me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina o coeficiente de adversidade das coisas e até sua imprevisibilidade ao decidir por mim mesmo? Assim, não há acidentes numa vida; uma ocorrência comum que irrompe subitamente e me carrega não provém de fora; se sou mobilizado para a guerra, esta guerra é a minha guerra, é feita à minha imagem e eu mereço-a. Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção: esses últimos possíveis são os que devem estar sempre presentes quando se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado. de livrar-me dela eu escolhi-a; pode ser por fraqueza, por covardia frente à opinião pública, porque prefiro certos valores ao valor da própria recusa de entrar na guerra (a estima dos meus parentes, a honra de minha família, etc.). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. Essa escolha será reiterada depois, continuamente, até o fim da guerra; portanto, devemos subscrever as palavras de J. Romains: "Na guerra, não há vítimas inocentes". Portanto, se preferi a guerra à morte ou à desonra, tudo se passa como se eu carreasse inteira responsabilidade por esta guerra. Sem dúvida, outros declararam a guerra, e eu ficaria tentado, talvez, a considerar-me um  simples cúmplice. Mas esta noção de cumplicidade não tem mais do que um sentido jurídico; só que, neste caso, tal sentido não se sustenta, pois de mim dependeu o fato de que esta guerra não viesse a existir para mim e por mim, e eu decidi que ela existisse. Não houve coerção alguma, pois a coerção não poderia ter qualquer domínio sobre uma liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, como dissemos e repetimos nesse livro, o próprio da realidade-humana é ser sem desculpa.

Jean- Paul Sartre, O ser e o nada, Ed.Vozes, p.678,679
Tradução de Paulo Perdigão

domingo, novembro 06, 2016

O significado de cultural



Em virtude da sua grande capacidade de adaptação e do seu engenho notável, o homem pode aperfeiçoar de muitíssimos modos a forma pela qual satisfaz as suas necessidades. Possui capacidade de criar o próprio meio, em vez de ser obrigado, como no caso de outros animais, a sujeitar-se ao meio em que se encontra. Dentro de cada sociedade existem maneiras especiais de satisfação das necessidades. As origens dessas maneiras,  regra geral, estão “perdidas na névoa dos tempos” ou, como dizem os aborígenes australianos, “pertencem ao tempo do sonho”. Com efeito, uma das coisas mais difíceis em Antropologia é traçar a origem de um costume. De ordinário, não existe ninguém com idade suficiente para se lembrar da sua origem porque, por via de regra, ele surgiu há muito tempo, muito antes da tradição oral ou da história escrita.
A cultura representa a resposta do homem às suas necessidades básicas. É o seu modo de se colocar à vontade no mundo. É o comportamento que aprendeu como membro da sociedade. Podemos defini-la como o modo de vida de um povo, o meio, em formas de ideias, instituições, língua, instrumentos, serviços e pensamentos, criado por um grupo de seres humanos que ocupam um território comum.
É esse meio feito pelo homem, a cultura, que todas as sociedades humanas impõem ao meio físico e no qual todos os seres humanos são adestrados. De tal forma se identifica a cultura com a própria vida que se pode dizer perfeitamente não ser ela tanto sobreposta à vida quanto uma extensão da mesma vida. Assim como o instrumento amplia e estende as capacidades da mão, assim a cultura acentua e estende as capacidades da vida.

São os seguintes critérios pelos quais se reconhece a cultura: (1) precisa ser inventada, (2) precisa ser transmitida de uma geração a outra, e (3) precisa ser perpetuada na sua forma original ou duma forma modificada. Ao passo que outros animais são capazes de um restrito comportamento cultural, só o homem parece possuir uma capacidade virtualmente ilimitada de cultura. O processo de criar, transmitir e manter o passado no presente é cultura – a capacidade que o linguista  norte-americano  Alfred Korybski denominou vinculadora do tempo. As plantas vinculam as substâncias químicas, os animais vinculam o espaço, mas só o homem é capaz de vincular o tempo.
A cultura é a criação conjunta do indivíduo e da sociedade, que interagem mútua e reciprocamente, para se servirem, manterem, sustentarem e desenvolverem um ao outro.
A cultura, portanto, é o complexo de configurações mentais que, em forma de produtos de comportamento e produtos materiais, constitui de modo principal que tem o homem de adaptar-se ao meio total, controlando-o, mudando-o e transmitindo e perpetuando os modos acumulados de fazê-lo.
A mudança evolutiva processa-se em todos os animais por mutação e pelo armazenamento, nos genes, das mutações mais valiosas resultantes da adaptação. No homem, a mudança evolutiva também se processou dessa maneira, mas a adição de um sem-número de mudanças não genéticas, que também representam mudanças evolutivas sociais. Essas mudanças culturais ou de comportamento, não genéticas, não estão armazenadas nos genes, porém na parte do meio feita pelo homem, na parte aprendida, na cultura, nos instrumentos, nos costumes, nas instituições, nas baladas, etc., nas lembranças dos homens, assim como em outros dispositivos não genéticos de armazenamento e recuperação de informações.
A natureza humana é o que se aprende do meio feito pelo homem; não é alguma coisa com que se nasce. O ser humano nasce, isso sim, com as possibilidades de aprendizagem, que, mediante o ensino adequado, podem ser transformadas em capacidades unicamente humanas.


ASHLEY MONTAGU - As necesidades humanas e o significado da cultura