skip to main |
skip to sidebar
Pesellino, Trindade
"Em certas páginas da sua autobiografia, A Rota do Futuro, Bill Gates deixa às vezes transparecer aquilo que se poderia considerar ser um completo cinismo - em especial na passagem em que confessa muito singelamente que para uma empresa não é forçosamente vantajoso apresentar os produtos mais inovadores. A maior parte das vezes é preferível observar o que fazem as empresas concorrentes ( e então faz uma clara referência, sem a citar, à sua concorrente Apple), deixá-las lançar os seus produtos, enfrentar as dificuldades inerentes a qualquer inovação, ser de certo modo o primeiro a experimentar; depois, numa segunda fase, inundar o mercado oferecendo cópias a baixo preço dos produtos da concorrência. Este cinismo aparente não é, contudo - sublinha Huellebecq no seu texto -, a verdade profunda de Gates; exprime-se antes naquelas passagens surpreendentes, e quase tocantes, em que reafirma a sua fé no capitalismo, na misteriosa "mão invisível"; a sua convicção absoluta, inquebrantável, de que, sejam quais forem as vicissitudes e os exemplos aparentemente contrários, o mercado, ao fim ao cabo, tem sempre razão, de que o bem do mercado se identifica com o bem geral. É então que Bill Gates se apresenta na sua verdade profunda, como um ser de fé, e foi essa fé, essa candura do capitalista sincero, que Jed Martin soube traduzir quando o representou, de braços abertos de par em par, caloroso e amigável, com as lentes dos óculos a brilhar sobre os últimos raios do sol poente no Oceano Pacífico. Jobs, pelo contrário, emagrecido pela doença, com o seu rosto preocupado e pintalgado por uma barba rala, dolorosamente apoiado na mão direita, faz lembrar um daqueles evangelistas itinerantes no momento em que, dando consigo talvez pela décima vez a debitar as suas pregações perante uma assistência dispersa e indiferente, é de repente invadido pela dúvida."
Michell Houellebecq, O mapa e o território"p.170, 171
A curiosidade deste texto é o recurso de Houellebecq à posição de narrador e de personagem do que narra, assim como é também Jed Martin , o artista sobre o qual Houellebecq comentador, fala. Esta estratégia do artista comentador de si próprio e criador de vários alter egos que são assumidamente mais do mesmo, isto é, a mesma filosofia do Gates, a venda do produto como objetivo principal e para isso vale tudo, inclusive, estas roupagens aparentemente diferentes. A venda, o sucesso, é por si, o maior bem. Depois, este Gates de braços abertos e o Jobs evangelista, e o Jed artista, são a trindade do capitalismo como religião, duas santíssimas trindades, os autores e os empresários unidos pela nova religião. Cínico, iconoclasta, mas lúcido.
2 comentários:
Adorei o título do seu post!!!
Guilherme. Irónico o título,sem dúvida!
Enviar um comentário